O artigo 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente regula o procedimento de entrega voluntária de crianças para adoção, conferindo à mulher, gestante ou parturiente, o direito de encaminhar a questão ao Poder Judiciário para iniciar os trâmites legais. A redação do caput destaca que a manifestação de vontade para entrega do filho é prerrogativa atribuída exclusivamente à mulher, sem referência à necessidade de consulta ou manifestação prévia do genitor.
O § 3º do mesmo artigo estabelece o prazo máximo de 90 dias, prorrogável por igual período, para a busca por membros da família extensa, conforme definido no parágrafo único do art. 25 do ECA. Contudo, o legislador não especifica em que momento essa busca deve ser iniciada, gerando lacunas interpretativas sobre a sua aplicabilidade em relação ao direito ao sigilo da mãe sobre o nascimento.
No § 5º, o legislador dispõe que, após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, caso exista pai registral ou indicado pela genitora, deve ser ratificada em audiência judicial nos termos do § 1º do art. 166 do ECA. Essa redação reforça a primazia da manifestação de vontade da mãe no processo, utilizando o conectivo “ou” para indicar que o genitor apenas será ouvido se houver vínculo formal ou indicação por parte da genitora.
O § 9º do artigo 19-A consagra o direito da mulher ao sigilo sobre o nascimento, permitindo que ela entregue o filho para adoção de forma segura e digna. Esse dispositivo visa proteger a liberdade e a autonomia da mulher, assegurando o respeito à sua decisão. O sigilo, no entanto, deve ser compatibilizado com o direito fundamental da criança ao conhecimento de sua origem genética, previsto no art. 48 do ECA. Esse direito é postergado, podendo ser exercido pela criança ao atingir 18 anos ou, excepcionalmente, antes disso, mediante decisão judicial.
O princípio da manutenção da criança na família natural, embora preferencial, não é absoluto. Deve-se observar o melhor interesse da criança ou adolescente, conforme disposto no art. 227 da Constituição Federal e nos arts. 3º e 4º do ECA, que priorizam a proteção integral e o bem-estar físico e psicológico dos menores.
A Resolução n. 485/2023 do CNJ regulamenta o procedimento de entrega voluntária para adoção, garantindo atendimento adequado à gestante ou parturiente que deseja exercer esse direito. O art. 5º da Resolução assegura o sigilo do nascimento e da entrega, estendendo-o ao genitor e à família extensa, caso seja a vontade da mãe. A normativa visa equilibrar os direitos envolvidos, tendo como finalidade principal a proteção integral da criança e da mulher.
Assim, a interpretação do conjunto normativo que compõe o microssistema da entrega voluntária para adoção aponta para a prevalência da autonomia da mulher, sem desconsiderar os direitos da criança, em consonância com os princípios constitucionais e a legislação infraconstitucional que orientam a proteção integral e o melhor interesse do menor.
RESUMO: A gestante ou parturiente que manifeste o interesse de entregar seu filho para adoção tem direito ao sigilo judicial em torno do nascimento e da entrega da criança, inclusive em relação ao suposto genitor e à família ampla.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 24/9/2024, DJe 7/10/2024.