A discussão sobre a possibilidade de redução das astreintes quando atingem valores considerados excessivos tem gerado controvérsias relevantes no âmbito do processo civil. O ponto central da controvérsia consiste em saber se tal redução pode recair sobre o valor total já acumulado (a multa vencida) ou se deve se restringir apenas à multa ainda em curso (a multa vincenda).
Independentemente do critério adotado para aferição do alegado excesso, é imprescindível observar o precedente vinculante firmado pela Corte Especial do STJ, que, ao interpretar o art. 537, § 1º, do CPC , fixou entendimento no sentido de que a modificação do valor ou da periodicidade da multa somente é cabível em relação à parte vincenda, não alcançando valores já vencidos e acumulados. Esse entendimento foi consolidado no julgamento dos EAREsp n. 1.766.665/RS.
Trata-se de orientação proveniente da Corte Especial, cuja autoridade supera eventual divergência interna entre turmas do próprio STJ, e que, nos termos do art. 927 do CPC, vincula os demais órgãos do Poder Judiciário. Não se trata de mera diretriz interpretativa, mas de uma regra de observância obrigatória, orientada pelos princípios da segurança jurídica e da coerência jurisprudencial, conforme estabelece o art. 926 do mesmo diploma legal.
Mesmo diante desse cenário, decisões recentes apontaram que, enquanto houver controvérsia sobre o valor devido, a multa ainda não poderia ser considerada “vencida”. Tal argumento, no entanto, foi expressamente rejeitado pela Corte Especial, que deixou claro que a data de vencimento da multa se dá com o término do prazo judicial para o cumprimento da obrigação, independentemente da posterior discussão sobre o quantum exato.
A tentativa de sustentar que a multa vencida poderia ser revisada com base em decisão isolada de turma que contrariou orientação da Corte Especial carece de validade jurídica. De acordo com o STJ, o precedente firmado vincula os demais órgãos judiciais e deve ser seguido para preservar a integridade do sistema processual e evitar a fragmentação da jurisprudência.
Além disso, o STJ entende que a literalidade do art. 537, § 1º, do CPC não deixa margens para interpretação extensiva: apenas a multa vincenda pode ser alterada. A expressão “vincenda” refere-se à obrigação futura, ainda não constituída, não podendo ser confundida com aspectos da periodicidade ou da quantificação da penalidade. Entendimento diverso desvirtua o objetivo da norma e, mais grave ainda, mina a força coercitiva da medida, que justamente se destina a compelir o devedor ao adimplemento tempestivo.
Cabe lembrar que a multa cominatória não é penalidade de natureza compensatória ou indenizatória, mas sim instrumento de coerção indireta. Reduzi-la após o vencimento da obrigação, sob alegação de valor excessivo, equivale a legitimar a conduta recalcitrante da parte inadimplente, normalmente grandes litigantes, como instituições financeiras, que deixam de cumprir decisões judiciais com a aposta estratégica na revisão posterior da multa.
Importante destacar que essa conduta processual tem sido denunciada pela própria Presidência do STJ, nas palavras do Ministro Herman Benjamin, como litigância predatória reversa, fenômeno em que grandes agentes econômicos se recusam sistematicamente a cumprir decisões judiciais, repetitivos ou mesmo normas expressas de lei, fomentando milhares de litígios com comportamento abusivo e desleal. Frente a esse contexto, permitir a redução retroativa da astreinte representa verdadeiro estímulo à prática de uma litigância que compromete a efetividade da jurisdição e sobrecarrega o Poder Judiciário.
É evidente que a elevação do valor das multas cominatórias deve ser analisada com cautela, mas o caminho adequado para conter excessos não é a relativização do marco legal da vincenda e da autoridade dos precedentes. O próprio ordenamento já prevê mecanismos para lidar com tais situações. O art. 499 do CPC autoriza a conversão da obrigação específica em perdas e danos, medida que pode ser adotada de ofício pelo juiz, inclusive como forma de conter o abuso do credor que, na expectativa de acumular valores mais altos, se abstém de requerer a conversão da obrigação. Tal comportamento contraria o dever de mitigação do próprio prejuízo (duty to mitigate the loss), corolário da boa-fé objetiva.
Ademais, o art. 536 do CPC também oferece ao magistrado instrumentos alternativos para garantir a efetividade da tutela jurisdicional. Medidas práticas, como a expedição de ordens diretas para cancelamento de restrições, baixa de registros indevidos ou suspensão de protestos, muitas vezes alcançam de forma mais eficaz o resultado pretendido, sem necessidade de acúmulo de penalidades financeiras.
Contudo, enquanto tais alternativas não forem adotadas, não há base legal que autorize a redução da multa vencida. Fazer isso seria enfraquecer deliberadamente um dos principais mecanismos processuais de coerção, subvertendo sua finalidade e premiando a inadimplência. Preservar a multa nos termos em que foi originalmente fixada, respeitando os limites da vincenda, é medida que assegura não apenas o cumprimento das decisões judiciais, mas a credibilidade do próprio sistema de justiça.
RESUMO:
Limites à modificação da multa cominatória: Nos termos do art. 537, § 1º, do CPC e conforme o precedente vinculante firmado pela Corte Especial do STJ (EAREsp n. 1.766.665/RS), é juridicamente inadmissível a redução da multa cominatória já vencida, ainda que os valores atingidos sejam elevados. A possibilidade de modificação judicial limita-se exclusivamente à multa vincenda, em respeito à segurança jurídica e à efetividade da tutela jurisdicional.
Medidas preventivas contra o acúmulo exorbitante da multa: O enfrentamento dos valores excessivos decorrentes da incidência prolongada da multa deve ocorrer por meio de providências processuais adequadas, tais como:
- i) a conversão da obrigação específica em perdas e danos, inclusive de ofício, quando caracterizada a conduta abusiva do credor que se omite quanto ao exercício da faculdade prevista no art. 499 do CPC, em violação ao dever de mitigação do próprio prejuízo; e
- ii) a substituição da medida coercitiva por outras providências práticas que assegurem o resultado equivalente ao cumprimento da obrigação, como a expedição de ordens diretas a órgãos e entidades competentes, nos termos do art. 536 do CPC.
EAREsp 1.479.019-SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Rel. para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Corte Especial, por maioria, julgado em 7/5/2025, DJEN 19/5/2025.