A recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 144-A da Lei nº 6.880/1980 (Estatuto dos Militares), representa um importante precedente jurisprudencial no que tange à proteção dos direitos fundamentais no âmbito do serviço público militar. A norma vedava o ingresso em cursos de formação e graduação de oficiais e praças, em regime de internato, a candidatos casados, em união estável, com filhos ou dependentes.
A matéria foi julgada no Recurso Extraordinário nº 1.530.083, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.388), sendo fixada a tese de que a restrição prevista no art. 144-A é incompatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à família e da isonomia.
O artigo 144-A do Estatuto dos Militares, inserido pela Lei nº 13.954/2019, estabelecia como requisito para ingresso em determinados cursos militares a inexistência de vínculo conjugal, união estável, paternidade, maternidade ou dependência socioafetiva. A justificativa administrativa residia na alegada necessidade de garantir a dedicação exclusiva e a disponibilidade permanente exigidas pela formação militar em regime de internato.
Entretanto, tal critério de seleção, ao impor discriminação com base no estado civil e na existência de filhos, desbordava dos limites da razoabilidade e da proporcionalidade, além de afrontar cláusulas pétreas da Constituição Federal de 1988.
A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) constitui fundamento da República Federativa do Brasil e irradia efeitos sobre toda a ordem jurídica. A vedação ao ingresso de pessoas casadas ou com filhos em cursos militares afronta esse princípio ao presumir, sem qualquer respaldo empírico, a incapacidade desses indivíduos de conciliar responsabilidades familiares com a formação profissional.
O artigo 226 da Constituição consagra a família como base da sociedade, merecedora de especial proteção do Estado. Qualquer norma que condicione negativamente o acesso a direitos ou cargos públicos em razão da existência de núcleo familiar viola esse preceito.
O caput do artigo 5º e o inciso I do artigo 37 da Constituição asseguram o direito à igualdade e o princípio da impessoalidade na administração pública, respectivamente. O STF já firmou entendimento de que critérios de ingresso em cargos públicos devem guardar pertinência lógica e razoável com as atribuições do cargo, não podendo constituir barreiras discriminatórias infundadas (RE 598.099/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski).
Toda restrição a direitos fundamentais deve ser submetida a um juízo de proporcionalidade em sentido estrito, o qual envolve três subcritérios: (i) adequação; (ii) necessidade; e (iii) proporcionalidade em sentido estrito.
No caso da norma impugnada, ainda que se reconheça a peculiaridade da carreira militar quanto à exigência de dedicação integral, não se demonstrou que a restrição ao estado civil ou à existência de filhos fosse medida necessária ou adequada para atingir tal finalidade. A existência de outros meios menos gravosos, como a estipulação de regras de frequência, rendimentos e conduta durante o curso, demonstra a desproporcionalidade da medida.
Todavia, visando preservar a segurança jurídica, o STF modulou os efeitos da decisão, atribuindo-lhe eficácia ex nunc, ou seja, aplicável apenas para os concursos futuros. Contudo, foi garantido ao recorrente no caso concreto o direito de participar do próximo certame, ainda que tenha ultrapassado o limite etário.
A partir de agora, a Administração Pública e o Poder Legislativo devem revisar eventuais normas similares, sob pena de afrontarem princípios constitucionais sensíveis, cuja observância é inafastável em um Estado Democrático de Direito.
TESE: É inconstitucional o artigo 144-A da Lei 6880/1980 (Estatuto dos Militares) ao condicionar o ingresso e a permanência nos órgãos de formação ou graduação de oficiais e de praças, ainda que em regime de internato e de dedicação exclusiva e/ou de disponibilidade permanente, peculiar à carreira militar, à inexistência de vínculo conjugal, de união estável, de maternidade, paternidade e de dependência. sócio-afetiva.