A recusa de tratamentos médicos por motivos religiosos, especialmente a objeção de Testemunhas de Jeová à transfusão sanguínea, tem provocado discussões jurídicas complexas entre o respeito à autonomia individual e o dever estatal de proteger a vida. No julgamento do Tema 1.069 da repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento segundo o qual pacientes adultos, plenamente capazes, têm o direito constitucional de recusar a transfusão de sangue com base em suas convicções religiosas, mesmo diante de risco à vida.
O caso suscita relevantes reflexões sobre o alcance da liberdade religiosa, a autonomia privada em decisões médicas, os limites da atuação estatal e o papel dos profissionais de saúde.
A decisão do STF está fundada nos direitos fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, especialmente no art. 5º, incisos VI e VIII, que garantem, respectivamente, a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, e o direito à objeção de consciência, e no art. 1º, inciso III, que elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.
O respeito à autonomia da vontade, notadamente em matéria de saúde, também encontra guarida no art. 15 do Código Civil, segundo o qual “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Essa norma expressa o reconhecimento jurídico da autodeterminação do indivíduo, mesmo diante de intervenções potencialmente salvadoras.
A Corte reconheceu que essa autodeterminação se estende à possibilidade de recusa à transfusão, desde que a decisão seja livre, esclarecida e inequívoca, seja manifestada no momento do atendimento, seja por meio de diretivas antecipadas de vontade (DAVs), nos moldes da Resolução CFM n.º 1.995/2012.
A tese firmada pelo STF em setembro de 2024, e reafirmada em agosto de 2025, estabelece:
- É permitido ao paciente, no gozo pleno de sua capacidade civil, recusar-se a se submeter a tratamento de saúde, por motivos religiosos. A recusa a tratamento de saúde, por razões religiosas, é condicionada à decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente, inclusive, quando veiculada por meio de diretivas antecipadas de vontade.
- É possível a realização de procedimento médico, disponibilizado a todos pelo sistema público de saúde, com a interdição da realização de transfusão sanguínea ou outra medida excepcional, caso haja viabilidade técnico- científica de sucesso, anuência da equipe médica com a sua realização e decisão inequívoca, livre, informada e esclarecida do paciente
Os embargos de declaração opostos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) foram rejeitados por maioria, sob a justificativa de ausência de omissão relevante. O relator, Min. Gilmar Mendes, destacou que o CFM, como terceiro interessado e não parte nos autos originais, não detinha legitimidade para opor os embargos. Além disso, a Corte entendeu que as preocupações relativas à emergência médica e à objeção de consciência já haviam sido contempladas no acórdão.
O ponto central do debate repousa na ponderação entre a proteção à vida (art. 196 da CF/88) e a liberdade religiosa/autonomia da vontade (arts. 1º, III, e 5º, VI e VIII, da CF/88). O STF reconheceu que, embora a proteção da vida seja um valor jurídico relevante, ela não prevalece automaticamente sobre a liberdade religiosa quando esta é exercida por pessoa plenamente capaz e consciente das consequências de sua decisão.
No mesmo sentido, a jurisprudência do STJ já reconheceu, em diversos julgados, a força normativa da autonomia privada em contexto médico, condicionando sua validade à existência de consentimento informado. A Corte reforçou que não cabe ao Estado paternalista substituir a vontade do paciente capaz, mesmo diante de risco à vida, quando existirem alternativas terapêuticas viáveis.
A decisão proferida com repercussão geral vincula todo o Poder Judiciário (art. 927, III, do CPC) e impõe repercussões imediatas ao sistema de saúde:
- Hospitais públicos e privados devem criar protocolos que contemplem alternativas às transfusões, como uso de hemoderivados, técnicas minimamente invasivas e métodos cirúrgicos “bloodless”.
- Profissionais de saúde, ao atenderem pacientes com objeções religiosas, deverão respeitar sua manifestação de vontade expressa, desde que válida, sob pena de responsabilidade civil, ética e penal.
- Em casos emergenciais em que o paciente esteja inconsciente e sem diretiva prévia, permanece a controvérsia sobre a conduta adequada, devendo-se priorizar o princípio do melhor interesse, respeitadas as circunstâncias do caso concreto.
- Consentimento informado documentado torna-se instrumento imprescindível à proteção jurídica de médicos, especialmente nos moldes do art. 22 do Código de Ética Médica, que veda tratamento sem consentimento do paciente.
O STF não acolheu a tese do CFM de que a decisão seria omissa quanto à objeção de consciência do profissional de saúde. Embora a Constituição assegure liberdade de consciência (art. 5º, VI), o exercício dessa objeção em ambiente hospitalar encontra limites nos deveres de continuidade do atendimento e encaminhamento do paciente para profissional apto.
Assim, a objeção de consciência do médico não pode ensejar abandono do paciente, especialmente em situações de urgência. O debate exige equilíbrio entre liberdade do profissional e dever de não causar dano, conforme princípios da bioética (beneficência, autonomia, justiça e não maleficência).
A decisão do STF reforça a centralidade da dignidade humana e da liberdade de consciência no ordenamento jurídico brasileiro. A recusa à transfusão por Testemunhas de Jeová, outrora foco de judicializações e práticas hospitalares controversas, passa agora a ter parâmetro constitucional consolidado, com efeitos vinculantes para médicos, gestores e magistrados.
RE 1.212.272 (Tema 1.069)