A transformação digital trouxe consigo desafios inéditos à tutela jurídica de crianças e adolescentes, especialmente no tocante à sua exposição em ambientes virtuais. O Projeto de Lei n. 2.628/2022, aprovado pelo Senado Federal e denominado “Estatuto Digital da Criança e do Adolescente”, propõe um marco legal voltado à proteção específica desse público vulnerável frente à adultização online, aos conteúdos impróprios e à exploração comercial em plataformas digitais. A proposição se insere no contexto da concretização do art. 227 da Constituição Federal, que consagra o princípio da proteção integral e prioritária da infância e juventude.
O ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir do advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), adota a doutrina da proteção integral, segundo a qual crianças e adolescentes são sujeitos de direitos fundamentais e merecem proteção prioritária do Estado, da sociedade e da família.
Essa previsão se harmoniza com tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), que prevê expressamente o dever dos Estados de proteger menores contra qualquer forma de exploração que possa prejudicar seu bem-estar.
A adultização de crianças e adolescentes nos meios digitais se manifesta pela exposição precoce a conteúdos sexuais, comportamentos inapropriados para a faixa etária e exploração comercial em redes sociais. Trata-se de fenômeno complexo, agravado pela monetização de interações digitais e pela lógica algorítmica das plataformas, que favorecem conteúdos apelativos e viralizáveis.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido clara ao reforçar a necessidade de resguardar o desenvolvimento moral e psicológico de crianças e adolescentes contra influências nocivas. Em consonância com o art. 3º do ECA, deve-se assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade infantojuvenil como objetivo prioritário.
O novo estatuto propõe regras claras às empresas provedoras de conteúdo digital e redes sociais, estruturadas em torno de três eixos fundamentais:
Deveres dos fornecedores de serviços digitais
As empresas passam a ser responsáveis pela:
- remoção imediata de conteúdos de abuso, exploração e violência;
- notificação às autoridades competentes;
- vinculação obrigatória de perfis de menores de 16 anos a responsáveis legais;
- implementação de mecanismos robustos de verificação etária (vedando a autodeclaração);
- disponibilização de ferramentas de controle parental com o mais alto grau de proteção, como limitação de tempo de uso, bloqueios e filtros de conteúdo.
Vedação a práticas comerciais abusivas
A norma proíbe:
- a utilização de técnicas de publicidade direcionada baseada em perfis emocionais;
- o uso de realidade aumentada ou virtual com fins comerciais;
- o tratamento de dados sensíveis de menores sem a devida justificativa legal.
Destaca-se a proibição do uso de loot boxes (caixas de recompensas) em jogos eletrônicos, por sua semelhança com práticas de jogos de azar.
Mecanismos de fiscalização e penalidades
A fiscalização será atribuída a autoridade administrativa autônoma, cuja criação será objeto de regulamentação posterior. O descumprimento das normas poderá ensejar advertências, multas (até 10% do faturamento no Brasil ou até R$ 50 milhões por infração) e até a suspensão das atividades, com responsabilização solidária de empresas estrangeiras.
O Estatuto, por seu turno, busca compatibilizar a liberdade de expressão e o acesso à informação com a proteção dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. A vedação expressa a sistemas de vigilância massiva, o direito ao contraditório em casos de remoção de conteúdo e a garantia de mecanismos de recurso demonstram atenção aos princípios do devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, da CF).
O STF já afirmou, em diversas oportunidades, que a liberdade de expressão não é absoluta, especialmente quando colide com outros direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e o melhor interesse da criança.
Portanto, o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente representa um avanço normativo relevante na adaptação do Direito às exigências do mundo digital. Embora haja críticas quanto a potenciais excessos regulatórios, é preciso reconhecer que a atuação estatal neste campo visa preservar bens jurídicos essenciais, como o desenvolvimento físico, psicológico e moral de crianças e adolescentes. O desafio futuro estará em sua efetiva implementação, na criação da autoridade reguladora competente e na permanente atualização frente às novas tecnologias e riscos.