Os delitos relacionados às armas de fogo no ordenamento jurídico brasileiro, em especial no que concerne ao porte e à posse irregular, bem como aos demais ilícitos correlatos previstos no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), têm sido objeto de reiterada análise pelo STJ, que possui entendimento consolidado sobre diversas questões jurídicas atinentes a esses crimes. A seguir, são destacados os principais aspectos jurisprudenciais sobre o tema.
- Posse Irregular de Arma de Fogo – Crime de Perigo Abstrato
A posse irregular de arma de fogo, acessório ou munição de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, configura crime de perigo abstrato, conforme disposto no art. 12 da Lei nº 10.826/2003. Trata-se de delito em que o bem jurídico tutelado é a incolumidade pública, sendo desnecessária a ocorrência de lesão concreta.
Jurisprudência
No Agravo Regimental no HC 759.689, o STJ reafirmou que a posse de arma de fogo desmuniciada ou parcialmente ineficaz não descaracteriza a tipicidade da conduta. No caso, a presunção de risco à segurança pública é inerente à configuração do tipo penal, sendo irrelevante a ausência de capacidade imediata de disparo do artefato.
Ainda no Agravo Regimental no HC 595.567, o STJ acrescentou que a simples detenção de arma de fogo em situação irregular já é suficiente, por si só, para configurar o ilícito penal, uma vez que se trata de crime de mera conduta, prescindindo da produção de resultado naturalístico.
- Aplicação do Princípio da Insignificância
No tocante à posse de munição, o STJ, em consonância com a jurisprudência do STF, admite a aplicação do princípio da insignificância em situações excepcionais, desde que ausente periculosidade social na conduta e verificada a desproporção entre a gravidade do fato e a punição legal. Todavia, tal princípio não pode ser aplicado de forma automática com base em critérios exclusivamente quantitativos, devendo-se considerar as circunstâncias concretas do caso.
Jurisprudência
No Agravo Regimental no HC 804.912, a Quinta Turma do STJ negou a aplicação do princípio da bagatela, pois o réu possuía reincidência por delitos semelhantes, o que demonstra maior reprovabilidade da conduta, afastando a possibilidade de exclusão da tipicidade penal pela via do princípio da insignificância.
- Arma de fogo com sinais de identificação adulterados
A adulteração, raspagem ou supressão de sinais identificadores de arma de fogo de uso permitido constitui delito autônomo previsto no art. 16, §1º, IV, da Lei nº 10.826/2003. O STJ consolidou o entendimento no sentido de que, após a extinção da abolitio criminis temporária do Estatuto do Desarmamento, que ocorreu em 23/10/05, a posse de arma com numeração raspada ou suprimida configura crime, independentemente de eventual intenção do possuidor de entregar a arma à autoridade competente.
Jurisprudência
No REsp 1.311.408, O STJ entendeu que a extinção da punibilidade por entrega voluntária do armamento, prevista no art. 32 do Estatuto do Desarmamento, não pode ser aplicada a armas com sinais adulterados, pois estas jamais poderiam ser regularizadas, e a abolitio criminis não se aplicaria nesse contexto.
- Porte de arma com registro vencido
A questão da validade do registro de arma de fogo, especificamente no que se refere ao porte, possui diferenciações importantes entre a posse e o porte de armas de fogo. A posse de arma de uso permitido com registro vencido, conforme entendimento jurisprudencial, caracteriza uma infração de natureza administrativa, não sendo suficiente para a configuração de ilícito penal. Entretanto, o porte de arma de uso restrito com registro vencido, em desacordo com a legislação, constitui crime tipificado nos arts. 14 e 16 da Lei nº 10.826/2003.
Jurisprudência
No AREsp 885.281, o STJ decidiu que, embora o porte de arma de uso permitido com registro vencido configure mera irregularidade administrativa, o porte de arma de uso restrito, em tais condições, constitui crime, sobretudo quando o agente não se encontra no exercício de sua função.
- Veículo profissional como local de trabalho – descaracterização
Outro ponto relevante diz respeito à apreensão de arma de fogo irregular em veículo utilizado para fins profissionais. O STJ entendeu que o veículo utilizado no exercício da profissão não pode ser considerado extensão do local de trabalho para fins de descaracterização do crime de porte ilegal.
Jurisprudência
No REsp 1.219.901, o STJ entendeu que um caminhão utilizado para frete, embora seja o local onde o agente exerce sua atividade profissional, não pode ser equiparado ao conceito de local de trabalho estático previsto no Estatuto do Desarmamento. Assim, a posse de arma em caminhão não se confunde com a posse em local de trabalho, caracterizando-se como porte ilegal de arma.
- Total ineficácia da arma ou munição – Atipicidade da conduta
Ainda que a posse de arma de fogo seja crime de perigo abstrato, o STJ reconheceu, em casos excepcionais, a atipicidade da conduta quando comprovada, por meio de laudo pericial, a total ineficácia do artefato para a prática de qualquer ação delituosa. Nesses casos, a inexistência de potencial lesivo exclui a tipicidade da conduta.
Jurisprudência
No REsp 1.451.397 restou definido que, embora a posse ilegal de arma de fogo seja crime de mera conduta, tal tipicidade não se configura quando há prova pericial inequívoca da ineficácia total do armamento, seja por defeitos mecânicos irremediáveis ou munições ineficazes.
- Natureza hedionda do crime
Com relação à classificação do crime de posse ou porte de arma de fogo com numeração suprimida, o STJ firmou o entendimento no sentido de que tal conduta, quando praticada com arma de uso permitido, não se enquadra entre os crimes hediondos. A Lei nº 13.497/2017, ao alterar a Lei dos Crimes Hediondos, conferiu tratamento mais gravoso apenas aos crimes cometidos com armas de uso proibido ou restrito.
Jurisprudência
No HC 525.249 foi afastada a natureza hedionda do crime de porte de arma de fogo de uso permitido com numeração raspada, entendimento consolidado na Súmula 668 do STJ:
Não é hediondo o delito de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido, ainda que com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.
Conclusão
Os delitos envolvendo armas de fogo, seja no contexto de posse ou porte, são tratados de forma rigorosa pelo STJ, especialmente no tocante à proteção da incolumidade pública e à prevenção de riscos potenciais. A Corte tem reiteradamente reafirmado que tais crimes se caracterizam pelo perigo abstrato, dispensando a comprovação de lesividade concreta, e a aplicação do princípio da insignificância é exceção e não a regra, devendo ser analisada à luz de cada caso concreto.