O presente artigo se trata de uma análise do direito à saúde sob a ótica da jurisprudência do STJ, com enfoque na atuação das operadoras de planos de saúde e nos limites da cobertura assistencial. A pesquisa estuda o entendimento jurisprudencial consolidado sobre a natureza do rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a obrigatoriedade de cobertura de tratamentos multidisciplinares para o Transtorno do Espectro Autista (TEA), medicamentos off-label e antineoplásicos.
O direito à saúde, consagrado no art. 6º e no art. 196 da Constituição Federal de 1988, impõe ao Estado e à iniciativa privada o dever de garanti-lo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. No âmbito da saúde suplementar, os contratos de plano de saúde devem respeitar os direitos fundamentais do consumidor, não podendo limitar indevidamente o acesso a tratamentos indispensáveis.
Portanto, passa-se à análise dos julgados do STJ no que diz respeito às obrigações das operadoras de planos de saúde, a natureza jurídica do rol da ANS e as situações que ensejam cobertura obrigatória, mesmo de procedimentos não previstos expressamente.
A natureza do rol da ANS
No julgamento paradigmático do EREsp 1.886.929/SP e 1.889.704/SP, concluído em 8 de junho de 2022, o Superior Tribunal de Justiça fixou entendimento sobre a natureza do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, definindo-o, em regra, como taxativo, mas com possibilidade de mitigação em hipóteses excepcionais.
Foram fixadas quatro teses principais:
- O rol da ANS é taxativo em regra, não obrigando as operadoras a custearem tratamentos não listados;
- Não há obrigação de cobertura quando houver, no rol, substituto terapêutico eficaz, efetivo e seguro;
- É possível a contratação de cobertura ampliada por meio de cláusulas adicionais;
- Admite-se a cobertura excepcional de procedimentos extra rol, desde que: (i) não haja expressa negativa de incorporação pela ANS; (ii) haja comprovação de eficácia à luz da medicina baseada em evidências; (iii) exista recomendação por órgãos técnicos nacionais ou internacionais; e (iv) seja promovido, quando possível, diálogo institucional com entes especializados, sem implicar deslocamento de competência à Justiça Federal.
O entendimento reforça que a taxatividade do rol objetiva garantir previsibilidade, segurança jurídica e sustentabilidade atuarial do sistema de saúde suplementar, prevenindo o aumento indiscriminado de custos para os beneficiários e assegurando que a inclusão de novos procedimentos seja precedida de rigorosa análise técnica e econômica.
Contudo, a excepcionalidade não afasta o controle jurisdicional sobre eventuais omissões, abusos ou ineficiências da ANS, sendo dever do Judiciário compatibilizar os princípios da legalidade, da eficiência regulatória, da proteção à saúde e da dignidade da pessoa humana.
Por seu turno, o rol da ANS representa um piso assistencial mínimo, não sendo vedada a contratação de coberturas ampliadas pelas operadoras. O modelo brasileiro de saúde suplementar baseia-se em mutualismo e equilíbrio atuarial, mas deve se sujeitar ao controle jurisdicional quando constatadas situações de desassistência ou de violação a direitos fundamentais.
Em síntese, o STJ pacificou o entendimento de que o rol da ANS possui natureza taxativa mitigada, permitindo a cobertura de procedimentos não listados em hipóteses excepcionais devidamente fundamentadas, preservando-se, assim, o equilíbrio entre regulação técnica, proteção contratual e tutela da saúde como direito fundamental.
Terapias multidisciplinares no tratamento do TEA e a obrigatoriedade de cobertura
O STJ consolidou entendimento relevante a respeito da obrigatoriedade de cobertura, pelos planos de saúde, de tratamentos multidisciplinares prescritos para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), à luz da legislação aplicável e das normativas expedidas pela ANS.
Para a Corte, a negativa de cobertura de métodos terapêuticos como musicoterapia, equoterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, psicologia e análise do comportamento aplicada (ABA) é abusiva, desde que haja prescrição médica e a finalidade do tratamento seja assistencial à saúde.
Contudo, quanto à psicopedagogia, o STJ estabeleceu critérios objetivos: tal terapia somente será considerada serviço de assistência à saúde – e, portanto, de cobertura obrigatória – quando realizada em ambiente clínico por profissional da área da saúde. Caso seja conduzida por profissional do ensino em ambiente escolar ou domiciliar, seu caráter será eminentemente educacional, afastando o dever de cobertura contratual, salvo previsão expressa.
A psicopedagogia está contemplada nas sessões de psicologia, as quais, por força da RN 541/2022 da ANS, passaram a ser de cobertura obrigatória e ilimitada, com a revogação das diretrizes de utilização anteriormente exigidas.
No tocante à musicoterapia, ela foi incluída na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do SUS, além do reconhecimento da atividade profissional pelo Ministério do Trabalho. Assim, sendo método eficiente e devidamente prescrito, integra o tratamento multidisciplinar do TEA com cobertura obrigatória pelas operadoras de planos de saúde.
Quanto ao reembolso integral de despesas realizadas fora da rede credenciada, restou delimitado que este somente será devido em hipóteses específicas, tais como: (i) descumprimento contratual pela operadora; (ii) violação de ordem judicial; ou (iii) inobservância de norma da ANS. Fora desses casos, o reembolso deve observar os limites contratuais e a tabela do plano.
Por fim, a jurisprudência da Terceira Turma mantém a compatibilidade entre o entendimento da Segunda Seção sobre a taxatividade mitigada do rol da ANS (EREsp 1.889.704/SP) e a proteção judicial ao tratamento integral de pessoas com TEA, amparando-se na prescrição médica, na finalidade terapêutica das intervenções e na normativa atualizada da ANS, que reconhece a essencialidade das abordagens multidisciplinares no cuidado com os transtornos globais do desenvolvimento.
Medicamentos off-label: dever de cobertura
O uso off-label de medicamentos refere-se à prescrição de fármacos para finalidades, doses, faixas etárias ou vias de administração distintas daquelas expressamente aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no registro do produto.
Embora o medicamento esteja devidamente registrado e autorizado para comercialização no país, seu uso off-label ocorre quando o profissional de saúde, com base em critérios técnicos e evidências científicas, entende ser necessário empregá-lo de forma diversa da indicação formalmente prevista na bula.
Tal prática não caracteriza experimentalismo, desde que respaldada por literatura científica idônea, protocolos clínicos e observância dos princípios da medicina baseada em evidências.
No plano jurídico, o STJ já reafirmou a obrigatoriedade de cobertura, pelos planos de saúde, de medicamentos prescritos com indicação off-label, desde que devidamente registrados na Anvisa, ainda que seu uso extrapole as indicações constantes na bula aprovada.
O entendimento jurisprudencial, portanto, é no sentido de que a recusa de cobertura baseada unicamente na ausência de previsão no rol da ANS é abusiva, sobretudo quando se trata de fármaco registrado na Anvisa e prescrito pelo médico assistente.
Embora o EREsp 1.886.929/SP tenha fixado a regra da taxatividade mitigada do rol da ANS, essa limitação não impede a cobertura de tratamentos excepcionais, desde que haja necessidade clínica comprovada, ausência de substituto terapêutico e respaldo técnico-científico.
A decisão foi proferida à luz da Lei n. 14.454/2022, que incluiu o §13 ao art. 10 da Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998), positivando os critérios para a obrigatoriedade de cobertura de procedimentos fora do rol. A norma estabelece que a cobertura é devida quando o tratamento possuir: (i) comprovação de eficácia à luz da medicina baseada em evidências, (ii) recomendação de órgãos técnicos nacionais (como a Conitec ou o Natjus) ou internacionais de renome, e (iii) ausência de substituto terapêutico eficaz no rol da ANS.
Dessa forma, a Corte reafirmou que o uso off-label não constitui, por si só, impedimento para cobertura contratual, devendo a situação ser analisada individualmente, com base na prescrição médica fundamentada e nos princípios da boa-fé objetiva, da dignidade da pessoa humana e da preservação do direito fundamental à saúde.
Nesse sentido, são inválidas as cláusulas contratuais que imponham limitações desarrazoadas ao tratamento indicado pelo profissional de saúde, especialmente quando não há alternativa terapêutica eficaz disponível dentro do rol da ANS, consolidando a proteção do consumidor e a efetividade do direito à saúde no âmbito da saúde suplementar.
Recusa indevida de cobertura e dano moral
A jurisprudência consolidada do STJ estabelece, de forma reiterada, que a recusa indevida ou injustificada de cobertura contratualmente prevista por operadoras de planos de saúde configura ato ilícito, ensejando a reparação por danos morais. Tal entendimento fundamenta-se na constatação de que a negativa de tratamento médico a que o beneficiário faz jus, por força de lei ou do contrato, ultrapassa os limites do mero aborrecimento, agravando a aflição psíquica e a angústia do paciente, sobretudo diante da sua já debilitada condição de saúde.
A Corte reconhece a existência de dano moral in re ipsa, ou seja, presumido a partir da própria ilicitude da conduta, sendo desnecessária a demonstração de prejuízo concreto, bastando a comprovação da negativa injustificada. Essa presunção decorre da violação a direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a integridade física e o direito à vida, valores que se intensificam quando o segurado se encontra em situação de vulnerabilidade clínica.
Além disso, o STJ considera abusiva a negativa de atendimento em casos de urgência ou emergência, com base em cláusula de carência, por entender que tal prática contraria normas do Código de Defesa do Consumidor e a própria Lei dos Planos de Saúde (Lei n. 9.656/1998), configurando injusta recusa de cobertura e, por conseguinte, fundamento legítimo para a condenação da operadora ao pagamento de indenização por danos morais.
Portanto, resta pacificado no âmbito do STJ que a negativa indevida de cobertura médico-hospitalar por operadoras de planos de saúde impõe o dever de indenizar, como forma de reparação ao sofrimento injustamente imposto ao beneficiário e de desestímulo à repetição da conduta lesiva no mercado de consumo.
Reajuste das mensalidades dos planos de saúde: legalidade, limites e controle de abusividade
O reajuste das mensalidades dos planos de saúde, especialmente em razão da mudança de faixa etária ou da variação de custos médicos e hospitalares (VCMH), constitui tema de elevada relevância no âmbito das relações de consumo e da regulação do setor suplementar de saúde.
O STJ, em sede de julgamento sob o rito dos recursos repetitivos (REsp 1.568.244/RJ), firmou orientação no sentido de que o reajuste fundado na alteração da faixa etária do beneficiário não é, por si só, abusivo, desde que observados determinados requisitos objetivos. Conforme a tese fixada, é válida a cláusula contratual que prevê o reajuste por mudança de faixa etária, desde que: (i) haja previsão expressa no contrato; (ii) sejam respeitadas as normas expedidas pelos órgãos reguladores, notadamente a ANS; e (iii) os percentuais aplicados não sejam aleatórios, desarrazoados ou desprovidos de fundamentação atuarial idônea, de modo a não onerar excessivamente o consumidor nem implicar discriminação etária.
A necessidade de reajustes periódicos nas mensalidades dos planos decorre da própria lógica econômico-financeira que sustenta o sistema de saúde suplementar, sujeito a constantes variações nos custos dos serviços médicos e hospitalares. Todavia, tais reajustes não podem vulnerar os princípios da boa-fé objetiva, do equilíbrio contratual e da transparência nas relações consumeristas, sob pena de configuração de prática abusiva, nos termos dos arts. 6º, III, e 51, IV e §1º, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/1990). Ressalte-se que, conforme pacificado na Súmula n. 608 do STJ, aplica-se o CDC aos contratos de plano de saúde, ressalvadas as hipóteses de autogestão.
No que se refere à variação de custos médicos e hospitalares (VCMH), a jurisprudência vem exigindo que as operadoras demonstrem de forma concreta e documental a necessidade de aplicação de reajustes fundados em aumento da sinistralidade ou de despesas assistenciais. A ausência de comprovação técnica quanto à elevação dos custos compromete a legitimidade do reajuste, tornando-o abusivo por configurar alteração unilateral do contrato em detrimento do consumidor, vedada pelo art. 51, inciso X, do CDC.
A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que, mesmo nos contratos coletivos – que não são diretamente regulados pela ANS no tocante aos índices de reajuste –, a operadora deve demonstrar, com base em dados atuariais e balanço financeiro, a real necessidade do aumento, especialmente quando este ultrapassar os parâmetros usualmente adotados pela agência reguladora para os planos individuais. A ausência de transparência na definição dos critérios e na comunicação prévia ao consumidor viola os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, podendo ensejar a revisão judicial do reajuste.
Portanto, a legalidade dos reajustes das mensalidades dos planos de saúde está condicionada à sua compatibilidade com as normas contratuais e regulamentares, à existência de motivação técnico-financeira adequada e à observância dos princípios protetivos do consumidor. O controle judicial da abusividade, nesse contexto, constitui instrumento essencial para assegurar o equilíbrio das relações contratuais e a efetividade do direito fundamental à saúde.
Considerações finais
Portanto, o entendimento jurisprudencial caminha para assegurar a efetividade do direito fundamental à saúde no âmbito da saúde suplementar. Ao mesmo tempo em que respeitam a competência regulatória da ANS, as decisões reconhecem a necessidade de se mitigar, em hipóteses excepcionais, a rigidez do rol de procedimentos, sempre que estiverem presentes critérios técnicos, médicos e científicos que justifiquem a cobertura de tratamentos não previstos.
Ficou evidenciado que a natureza do rol da ANS é predominantemente taxativa, mas com abertura para mitigação em situações específicas, assegurando-se a cobertura de terapias multidisciplinares para pacientes com TEA, medicamentos off-label registrados na Anvisa, e procedimentos que, embora fora do rol, atendam a critérios de eficácia e necessidade comprovada. A jurisprudência também reconhece a possibilidade de reembolso, ainda que fora da rede credenciada, quando houver negativa indevida ou descumprimento de ordem judicial.
Além disso, o STJ tem afirmado, de maneira firme e reiterada, o dever das operadoras de indenizar por danos morais nos casos de negativa injustificada de cobertura. Tal conduta não é tratada como mero inadimplemento contratual, mas como violação à dignidade do beneficiário, que se vê privado do acesso ao tratamento necessário, agravando sua condição física e emocional.
Outro ponto relevante diz respeito à legalidade e aos limites dos reajustes das mensalidades dos planos de saúde, especialmente os motivados pela mudança de faixa etária ou pela variação de custos médicos e hospitalares (VCMH). O STJ estabeleceu que o reajuste por faixa etária é válido desde que esteja previsto no contrato, respeite as normas da ANS e se fundamente em critérios atuariais idôneos. No entanto, a Corte também tem reconhecido o dever das operadoras de comprovar, de forma objetiva e documental, a necessidade de reajustes por VCMH, sob pena de configurarem prática abusiva, em afronta ao CDC. Assim, a revisão judicial dos reajustes mostra-se imprescindível para garantir o equilíbrio contratual, a transparência e a proteção do consumidor, em conformidade com os princípios da boa-fé e da razoabilidade.
Em suma, o Judiciário tem buscado equilibrar os interesses econômicos e contratuais das operadoras com os direitos fundamentais dos consumidores, promovendo uma tutela jurídica que se pauta pela dignidade humana, pela boa-fé objetiva e pela proteção da saúde. A consolidação desses entendimentos é essencial para garantir segurança jurídica, previsibilidade e, sobretudo, a efetivação do direito à saúde como valor fundante do Estado Democrático de Direito.