A recente aprovação, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei nº 2.159/2021, que institui a nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental, marca uma inflexão relevante na política ambiental brasileira. O texto, aprovado também pelo Senado e agora pendente de sanção presidencial, promove alterações significativas nas normas de controle ambiental, propondo a desburocratização do licenciamento em nome da eficiência administrativa e do desenvolvimento econômico. No entanto, tais mudanças suscitam sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade, à luz do art. 225 da Constituição da República, bem como quanto à observância de princípios estruturantes do Direito Ambiental, como a precaução, a prevenção e a vedação ao retrocesso ecológico.
O projeto cria dois novos instrumentos: a Licença Ambiental Especial (LAE) e a Licença por Adesão e Compromisso (LAC). A primeira, destinada a empreendimentos estratégicos de alto impacto, passa a ter análise unificada e validade de até 10 anos. A segunda, voltada a atividades de baixo e médio impacto, permitirá licenciamento simplificado com base apenas em critérios predefinidos, sem necessidade de estudos de impacto ambiental (EIA/RIMA).
Outras disposições igualmente polêmicas incluem:
- A restrição da atuação de órgãos técnicos e de controle social (como ICMBio, Iphan e Funai), cujos pareceres só terão validade se emitidos em prazo determinado, e sem exigência de motivação em caso de desconsideração por parte da autoridade licenciadora.
- A supressão da autonomia fiscalizatória do Ibama e demais órgãos federais, cujas autuações em obras licenciadas por Estados dependerão de convalidação do órgão estadual.
- A modificação pontual da Lei da Mata Atlântica, dispensando autorização para a supressão de vegetação nativa em determinadas hipóteses.
O art. 225 da Constituição Federal consagra o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental de titularidade difusa, impondo ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente reconhecido a proibição de retrocesso ambiental como princípio constitucional implícito (ADI 3.540/DF; ADI 4.903/MT), o que impede que normas infraconstitucionais promovam a diminuição da proteção jurídica anteriormente assegurada.
A criação da LAC, ao permitir a dispensa de EIA/RIMA para intervenções potencialmente danosas, como a duplicação de rodovias, vulnera o princípio da precaução, consagrado na jurisprudência do STJ (REsp 1630961) e na doutrina ambientalista. Tal princípio impõe a realização de avaliação prévia de impactos sempre que houver incerteza científica razoável sobre os danos ambientais potenciais.
Ademais, a exclusão ou mitigação da manifestação de entes técnicos e da sociedade civil fere o princípio da participação democrática e compromete a legitimidade do licenciamento, que deve ser, por essência, um procedimento técnico-jurídico e dialógico. O enfraquecimento do papel de órgãos como Funai e Iphan revela-se especialmente grave no contexto de empreendimentos que impactem territórios indígenas e patrimônios culturais, implicando possível violação à Convenção 169 da OIT, incorporada ao ordenamento interno com status supralegal (Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019).
A substituição de um procedimento técnico-científico por uma autodeclaração (como ocorre na LAC) gera risco de invalidação futura de licenças, diante da ausência de diligência estatal no dever de proteção. Além disso, a possibilidade de anulação de multas aplicadas por órgãos federais por decisão de entes estaduais afronta o pacto federativo e o princípio da autonomia administrativa dos órgãos de controle ambiental da União (arts. 23 e 225 da CF).
Esse cenário pode dar ensejo à judicialização massiva, seja por organizações da sociedade civil, seja por partidos políticos, com fundamento na tese do “mínimo existencial ecológico”, o que compromete a segurança jurídica e a previsibilidade para os próprios empreendedores.
A desburocratização administrativa é um objetivo legítimo do Estado, mas não pode ocorrer em detrimento das garantias ambientais constitucionalmente estabelecidas. Em outras palavras, o desenvolvimento sustentável exige a compatibilização entre crescimento econômico e proteção dos recursos naturais, e não sua substituição. A proteção ambiental não pode ser relativizada por argumentos de conveniência política ou econômica.
Nesse sentido, o PL nº 2.159/2021 ignora o compromisso assumido pelo Brasil em tratados internacionais, como o Acordo de Paris, e compromete a credibilidade do país perante o mercado externo, especialmente no que tange a cláusulas ambientais de acordos comerciais e a financiamento de grandes projetos internacionais.
Diante do quadro apresentado, a sanção presidencial do PL 2.159/2021, em sua forma atual, poderá ensejar a propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) por violação aos princípios da precaução, prevenção, participação, não regressividade ambiental e separação de poderes. A expectativa de vetos presidenciais parciais, sobretudo quanto à exclusão de competências do CONAMA e de órgãos especializados, poderá atenuar os efeitos mais gravosos da proposta, mas não elimina os vícios estruturais da norma.
Impõe-se, portanto, que o controle de constitucionalidade, seja ele preventivo ou repressivo, atue de forma direta para assegurar que a desburocratização não se converta em permissividade ambiental. O licenciamento ambiental, longe de ser um entrave, é ferramenta essencial de ordenação territorial, de respeito à dignidade humana e de proteção intergeracional.