O entendimento do STF e a superação da jurisprudência do STJ
É certo que o chamado “direito ao esquecimento” há muito vem sendo debatido na jurisprudência nacional e estrangeira. Alguns exemplos são a Chacina da Candelária, ocorrida em 1993, rememorada no programa da TV Globo (Linha Direta) em 2006; o “caso Lebach”, ocorrido na Alemanha em 1969; o caso Google Spain vs AEPD e Mario Costeja González, de 2014 e, mais recentemente, o caso de Aída Curi, apreciado tanto pelo STJ quanto pelo STF.
Independentemente de qual seja o caso sob análise, o ponto nodal da controvérsia cinge-se a solucionar o conflito aparente entre os princípios da dignidade da pessoa humana (privacidade, intimidade e honra) em contraposição aos princípios da liberdade de expressão e de informação.
Inicialmente, o STJ acolhia a tese do “direito ao esquecimento”, dependendo sempre do caso concreto e da ponderação dos interesses envolvidos, conforme se pode observar das seguintes passagens:
(…)
16. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o vínculo do futuro com o presente -, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
17. Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos – historicidade essa que deve ser analisada em concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável. (REsp n. 1.334.097/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/5/2013, DJe de 10/9/2013.)
(…)
2. Quando os registros da folha de antecedentes do réu são muito antigos, admite-se o afastamento de sua análise desfavorável, em aplicação à teoria do direito ao esquecimento. (AgRg no REsp n. 1.578.033/RJ, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 16/6/2016, DJe de 28/6/2016.)
(…)
6. Na espécie, sopesadas as datas da reabilitação e do indeferimento da progressão de regime, e verificado que transcorreram pouco mais de três anos desde a última falta grave (subversão da ordem e disciplina interna), considera-se esse período insuficiente para, no caso concreto (pena de quase 30 anos, com término em 2036), reconhecer o direito ao esquecimento. (AgRg no HC n. 477.887/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 12/3/2019, DJe de 25/3/2019.)
Por fim, no caso Aída Curi, o STJ reafirmou sua jurisprudência:
8. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de valores, o acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança. (REsp n. 1.335.153/RJ, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 28/5/2013, DJe de 10/9/2013.)
Após o não provimento do Recurso Especial no caso Aída Curi, o Recurso Extraordinário foi remetido ao STF que, reconhecendo a repercussão geral sobre a matéria, firmou a seguinte tese no Tema 786, em 11/02/2021:
É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.
Portanto, para o STF o “direito ao esquecimento”, compreendido este como o poder de impedir a divulgação de fatos verdadeiros e obtidos de forma lícita, é incompatível com a Constituição Federal de 1988, o que não impede a apuração de eventuais responsabilidades quando cometidos excessos ou abusos, especialmente quando violadas a proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral.
Após a consolidação do entendimento pelo STF, o STJ teve nova oportunidade de se pronunciar sobre o tema e acabou por seguir o que a Corte Suprema havia definido no Tema 786 da Repercussão Geral.
No REsp 1961581-MS, julgado em 07/12/2021, de Relatoria da Min. Nancy Andrighi, ao apreciar o pedido de exclusão de matéria jornalística que, segundo o recorrente, interferia e continua repercutindo negativamente na sua vida profissional e que não mais existia interesse social na manutenção da matéria, possuindo direito ao esquecimento, a Corte assim decidiu:
5. Em algumas oportunidades, a Quarta e a Sexta Turmas desta Corte Superior se pronunciaram favoravelmente acerca da existência do direito ao esquecimento. Considerando os efeitos jurídicos da passagem do tempo, ponderou-se que o Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por meio de diversos institutos (prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada). Ocorre que, em fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal definiu que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal (Tema 786). Assim, o direito ao esquecimento, porque incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, não é capaz de justificar a atribuição da obrigação de excluir a publicação relativa a fatos verídicos. (REsp n. 1.961.581/MS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 7/12/2021, DJe de 13/12/2021.)
Nesse sentido, o STJ convergiu ao entendimento do STF, estando pacificada a jurisprudência no sentido de não ser compatível com a CF/88 o chamado “direito ao esquecimento”, o que não impede a apuração de eventuais responsabilidades quando cometidos excessos ou abusos.
DISTINGUISHING:
Em 2022, ao revisitar o tema do “direito ao esquecimento”, o STJ acabou por realizar verdadeiro distinguishing quanto ao Tema 786 da Repercussão Geral ao decidir que a determinação para que os provedores de busca na internet procedam a desvinculação do nome de determinada pessoa, sem qualquer outro termo empregado, com fato desabonador a seu respeito dos resultados de pesquisa não se confunde com o direito ao esquecimento, objeto da tese de repercussão geral 786/STF.
Em outras palavras, o STJ entendeu que a situação sob análise não se encarta nos parâmetros de incidência do precedente firmado pelo STF no Tema 786, tratando-se de situação diversa que, por tal motivo, mereceu tratamento diferente.
No caso concreto, a parte autora ajuizou ação cujo objeto se traduzia em pedido direcionado ao Google para que desvinculasse (desindexasse) o nome da requerente de notícias vinculadas a uma suposta fraude ocorrida em concursos públicos no passado, mas que nunca foi comprovada, preservando-se o conteúdo das matérias.
O STJ, no caso em exame, entendeu que não se poderia confundir “desindexação com direito ao esquecimento”, “porque o tema desindexação é significativamente mais amplo do que o direito ao esquecimento”, o que corrobora a ausência de qualquer divergência do entendimento manifestado por esta Corte Superior com a tese vinculante firmada pelo STF (REsp n. 1.660.168/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 21/6/2022, DJe de 30/6/2022.)
Portanto, permanece válido o entendimento do STF firmado no Tema 786 da Repercussão Geral, que foi devidamente acompanhado pelo STJ, salvo em casos específicos e devidamente destacados, como foi este do REsp n. 1.660.168/RJ, não havendo que se falar em amparo constitucional ao “direito ao esquecimento”.