A personalidade jurídica constitui um dos pilares do Direito Privado moderno, assegurando a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas em relação aos seus sócios ou instituidores. Essa autonomia, fundamental para o desenvolvimento da atividade econômica, confere segurança jurídica e incentiva a livre iniciativa, especialmente nas relações empresariais.
Contudo, essa separação patrimonial, se utilizada de forma abusiva ou fraudulenta, pode ser afastada por meio da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, instrumento que visa coibir desvios e assegurar a efetividade do ordenamento jurídico.
Nos termos do Direito Civil, a regra geral é a plena autonomia entre o patrimônio da pessoa jurídica e o de seus sócios ou administradores. Essa distinção permite que a sociedade empresária responda exclusivamente com seus bens pelas dívidas contraídas, protegendo o patrimônio pessoal dos seus integrantes. Trata-se de um princípio que confere estabilidade às relações jurídicas e fomenta o empreendedorismo, conforme observado no art. 985 e seguintes do Código Civil.
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surge como resposta a práticas abusivas que se valem da autonomia patrimonial para fraudar credores ou burlar a lei. Seu fundamento repousa na vedação ao abuso de direito (art. 187 do CC) e na função social da empresa. Nesses casos, o Poder Judiciário pode autorizar, de forma excepcional, que os bens pessoais dos sócios ou administradores sejam atingidos, desconsiderando-se temporariamente a autonomia da pessoa jurídica.
A principal norma que disciplina a desconsideração no direito comum é o art. 50 do Código Civil, cuja redação foi atualizada pela Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019):
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
A norma consagra a teoria maior da desconsideração, exigindo a demonstração de dois requisitos cumulativos:
- Abuso da personalidade jurídica, caracterizado por:
- Desvio de finalidade, entendido como utilização da pessoa jurídica para fins alheios aos seus objetivos sociais;
- Confusão patrimonial, que se verifica pela ausência de separação entre os bens da pessoa jurídica e os de seus sócios.
- Benefício direto ou indireto do sócio ou administrador com o abuso praticado.
Em contraponto à teoria maior, o Código de Defesa do Consumidor (art. 28, § 5º) e a Lei nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) adotam a teoria menor da desconsideração, que prescinde da prova de fraude ou confusão patrimonial.
Nessas hipóteses, basta que a personalidade jurídica seja obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor ou ao meio ambiente, ou ainda que reste comprovada a insolvência da pessoa jurídica.
No que tange à responsabilização dos integrantes da pessoa jurídica, observa-se relevante distinção entre as teorias maior e menor. A jurisprudência do STJ tem afirmado que, na teoria menor, não se admite a responsabilização pessoal do sócio que não desempenha atos de gestão, salvo se demonstrado que ele contribuiu, ainda que de forma culposa, para a prática de atos de administração que ensejaram o prejuízo:
(…) 1. Para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, § 5º, do CDC), basta que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor e o fato de a personalidade jurídica representar um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados. 2. A despeito de não se exigir prova de abuso ou fraude para fins de aplicação da Teoria Menor da desconsideração da personalidade jurídica, tampouco de confusão patrimonial, o § 5º do art. 28 do CDC não dá margem para admitir a responsabilização pessoal de quem, embora ostentando a condição de sócio, não desempenha atos de gestão, ressalvada a prova de que contribuiu, ao menos culposamente, para a prática de atos de administração. (…) (STJ – REsp: 1900843 DF 2019/0321112-7, Relator.: PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 23/05/2023, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/05/2023)
Portanto, nos termos da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, adotada pelo CDC, a superação da autonomia patrimonial não exige a demonstração de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. De acordo com o art. 28 do CDC, a desconsideração pode ser aplicada nas hipóteses em que houver a comprovação da insolvência da pessoa jurídica, associada à má administração da empresa (caput), ou, ainda, quando a personalidade jurídica representar, por si só, um obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores (§ 5º). Trata-se de um critério objetivo, orientado pela finalidade protetiva do microssistema consumerista, visando garantir a efetividade da tutela dos direitos dos consumidores.
Assim, a desconsideração da personalidade jurídica constitui importante mecanismo de proteção contra fraudes e abusos no âmbito das relações civis, consumeristas e ambientais. Todavia, por se tratar de medida excepcional que limita o princípio da autonomia patrimonial, sua aplicação deve observar critérios legais rigorosos, especialmente nas hipóteses regidas pelo Código Civil. Já nas relações consumeristas e ambientais, a aplicação da teoria menor busca garantir efetividade aos direitos fundamentais, notadamente ao ressarcimento de danos por parte dos hipossuficientes.