O STJ foi instado a solucionar controvérsia jurídica sobre a possibilidade de retificação do assento de nascimento para fins de inclusão de gênero neutro, à luz dos princípios constitucionais e normas infraconstitucionais que asseguram a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade.
A Constituição da República, em seu art. 1º, inciso III, consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, irradiando tal princípio para todo o ordenamento jurídico. Em consonância, o art. 1º, inciso II, garante o direito à autodeterminação individual como expressão do livre desenvolvimento da personalidade.
Neste contexto, a proteção jurídica à identidade de gênero — inclusive aquela que extrapola a lógica binária tradicional (masculino/feminino) — decorre da cláusula geral de tutela da personalidade, insculpida no art. 12 do Código Civil. Referido dispositivo impõe o reconhecimento do direito subjetivo da pessoa à sua autoidentificação, seja esta binária ou não-binária, como desdobramento da autonomia privada e do respeito à diversidade existencial.
A jurisprudência pátria tem evoluído no sentido de reconhecer o direito das pessoas transgêneras à retificação de nome e gênero no registro civil, inclusive de forma extrajudicial, conforme disciplinado pelo Provimento nº 73/2018 do CNJ. Todavia, observa-se que essa normatividade tem operado predominantemente dentro de um paradigma binário de gênero.
A ausência de previsão normativa específica para a inclusão de marcador de gênero neutro não implica negativa de tutela jurisdicional, uma vez que a omissão legislativa não autoriza o Estado a desconsiderar um fato social consolidado, qual seja, a existência de identidades não-binárias. Nos termos do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, na ausência de norma específica, o juiz decidirá o caso com base nos princípios gerais de direito, nos costumes e na analogia. Ademais, o art. 140 do CPC dispõe que o magistrado não se exime de decidir sob o argumento de lacuna normativa.
Assim sendo, a distinção entre pessoas transgêneras binárias e não-binárias carece de respaldo jurídico, uma vez que ambas se encontram sob o mesmo manto protetivo da dignidade da pessoa humana e da autonomia de sua identidade de gênero. Negar a possibilidade de inclusão de gênero neutro implicaria afronta aos princípios da igualdade (art. 5º, caput, da CF) e da vedação à discriminação.
O reconhecimento da identidade de gênero não-binária constitui medida que assegura a plena efetividade dos direitos da personalidade, combatendo a marginalização social e jurídica de tais sujeitos e promovendo o respeito à diversidade humana.
Portanto, é reconhecido o direito da pessoa transgênera não-binária à retificação do registro civil para inclusão de gênero neutro, como expressão legítima de sua identidade pessoal, fundamento da dignidade humana e do livre desenvolvimento da personalidade. A ausência de norma específica não pode obstar o reconhecimento desse direito, cuja eficácia decorre diretamente dos princípios constitucionais e dos dispositivos legais de aplicação subsidiária, assegurando-se, assim, a máxima proteção aos direitos fundamentais da personalidade.
RESUMO: Deve ser reconhecido o direito ao livre desenvolvimento da personalidade da pessoa transgênera não-binária de autodeterminar-se, possibilitando-se a retificação do registro civil para que conste gênero neutro.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 6/5/2025.