A discussão jurídica posta em análise envolve duas questões centrais: (i) se é obrigatória a intervenção da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) nos processos de adoção que envolvam criança pertencente a comunidade indígena; e (ii) sendo afirmativa a resposta, qual o juízo competente para processar e julgar tais demandas, considerando-se a eventual participação da autarquia federal e a natureza do direito tutelado.
O caso concreto versa sobre ação de adoção intuitu personae, cumulada com pedido de tutela de urgência, proposta por pessoa indígena que convive em união estável com a mãe biológica da criança desde o nascimento desta. A ação foi inicialmente distribuída perante a Justiça Estadual do Pará, que declinou da competência em favor da Justiça Federal, ao argumento de que a necessidade de participação da FUNAI atrairia a competência da jurisdição federal, com base no art. 109, incisos I e XI, da Constituição Federal, bem como no art. 28, § 6º, inciso III, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nos termos do art. 28, § 6º, do ECA, nos processos de colocação em família substituta envolvendo crianças ou adolescentes indígenas, é imprescindível a oitiva de representantes do órgão federal encarregado da política indigenista, bem como a participação de profissionais com formação em antropologia, os quais devem integrar a equipe multidisciplinar que acompanhará o processo. Trata-se de medida que visa assegurar a preservação da identidade étnica e cultural das crianças e adolescentes indígenas, bem como o respeito aos seus costumes e tradições, desde que não colidam com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição e pelo próprio ECA (art. 28, § 6º, I).
A exigência de intervenção da FUNAI, portanto, não configura mero formalismo processual. Ao contrário, representa um instrumento de proteção do melhor interesse da criança e do adolescente indígena, permitindo maior legitimidade à decisão judicial e garantindo que sejam consideradas as especificidades socioculturais do grupo étnico a que pertencem. A inobservância dessa regra pode implicar vício processual relevante, presumindo-se o prejuízo, salvo em situações absolutamente excepcionais.
Superada a questão da obrigatoriedade de participação da FUNAI, impõe-se examinar se tal circunstância, por si só, tem o condão de deslocar a competência para a Justiça Federal.
O art. 109 da Constituição Federal delimita a competência da Justiça Federal, prevendo, no inciso I, sua atuação nas causas em que a União, autarquias ou empresas públicas federais figurem no polo ativo ou passivo, ou ainda como assistentes ou oponentes. Já o inciso XI estabelece sua competência para causas que versem sobre direitos indígenas.
Nesse contexto, é importante rememorar o entendimento consolidado pelo STJ, segundo o qual cabe à Justiça Federal decidir, à luz da Súmula 150, se há interesse jurídico suficiente da União, de suas autarquias ou empresas públicas, a justificar sua presença no feito.
Entretanto, nos processos de adoção de crianças indígenas, a FUNAI não atua como parte propriamente dita (autora, ré, assistente ou oponente), tampouco detém direito subjetivo em disputa. Sua intervenção possui natureza consultiva e opinativa, limitando-se a prestar auxílio técnico no âmbito da equipe multidisciplinar do juízo estadual, nos termos do art. 28, § 6º, do ECA.
Além disso, a demanda de adoção não tem como objeto direitos coletivos ou difusos do povo indígena, nem discute a titularidade ou exercício de direitos previstos no art. 231 da Constituição Federal, o que afasta a aplicação do art. 109, XI, da Carta Magna. O escopo da ação reside na proteção do interesse individual da criança, com vistas à sua inserção em ambiente familiar adequado, nos termos da legislação infraconstitucional aplicável.
Assim sendo, o simples fato de a criança pertencer à etnia indígena não é suficiente para atrair a competência da Justiça Federal, uma vez que a controvérsia se insere no campo do direito de família, de natureza eminentemente privada.
A Justiça Estadual, notadamente as Varas da Infância e Juventude, é a jurisdição mais apropriada para processar tais demandas, pois possui estrutura especializada, incluindo equipes interprofissionais capacitadas para conduzir procedimentos de adoção, inclusive aqueles que envolvam crianças e adolescentes de origem indígena.
Dessa forma, ainda que seja imprescindível a participação da FUNAI, tal intervenção não desloca, por si só, a competência para a Justiça Federal. Deve prevalecer a competência da Justiça Estadual, por ser a mais adequada para assegurar o cumprimento do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, inclusive no tocante ao respeito à sua identidade étnico-cultural.
RESUMO: É do melhor interesse de crianças e adolescentes indígenas a competência da Justiça Estadual para processar e julgar ações de adoção, assim sendo, a intervenção da FUNAI em tais situações, ainda que obrigatória, não atrai a competência automática da Justiça Federal.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 3/4/2025, DJEN 9/4/2025.