É possível a ampliação, por via interpretativa, da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica para alcançar o patrimônio de terceiros que tenham sido beneficiados por atos de confusão ou desvio patrimonial?
NÃO.
No caso analisado pelo STJ, o Tribunal de origem estendeu os efeitos da desconsideração da personalidade jurídica aos filhos dos sócios das empresas integrantes do grupo econômico, sob o fundamento de que tais filhos receberam, a título de doação, bens imóveis e valores em dinheiro de seus genitores, os quais foram atingidos pela desconsideração nas formas clássica e inversa. A responsabilidade dos recorrentes foi limitada aos bens recebidos após a data do “saque do título exequendo”.
Contudo, o artigo 50 do Código Civil de 2002, tanto em sua redação original quanto na atual, dispõe que a desconsideração da personalidade jurídica visa a coibir abusos decorrentes da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, permitindo a responsabilização de sócios por obrigações da sociedade, de sociedades por dívidas de seus sócios e de empresas integrantes de grupo econômico por obrigações entre si. Não há, entretanto, autorização legal para sua extensão a terceiros que não detenham vínculo jurídico com a pessoa jurídica, como filhos de sócios.
Além disso, o reconhecimento de fraude contra credores exige o ajuizamento de ação própria — ação pauliana —, conforme previsto no artigo 161 do Código Civil, não sendo possível sua declaração incidental no bojo de execução, com base em institutos alheios à sistemática do negócio fraudulento. A desconsideração da personalidade jurídica não se confunde, portanto, com a ação revocatória ou com a ação pauliana, uma vez que estas visam à ineficácia ou anulação de atos jurídicos específicos, ao passo que a desconsideração tem por objeto a inoponibilidade da autonomia patrimonial da pessoa jurídica diante de obrigações inadimplidas.
Conforme precedente da Quarta Turma do STJ (REsp 1.180.191/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 09/06/2011), a técnica da desconsideração não tem por finalidade desconstituir negócios jurídicos praticados pela empresa, mas sim tornar ineficaz, de forma relativa, a personalidade jurídica em relação a determinados credores.
No caso concreto, os bens recebidos pelos filhos dos sócios por meio de doação ocorreram, em sua maioria, em data anterior à constituição da obrigação e, portanto, não há demonstração do consilium fraudis, do eventus damni e tampouco da anterioridade da dívida — requisitos indispensáveis à caracterização da fraude nos moldes do artigo 158, § 2º, do CC/2002. Ademais, a confusão patrimonial foi reconhecida apenas entre as sociedades do grupo, não havendo qualquer elemento que indique confusão entre estas e os recorrentes, o que afasta a possibilidade de responsabilização patrimonial com base no artigo 50 do Código Civil.
A responsabilização patrimonial dos filhos dos sócios ocorreu, portanto, sem a devida observância do procedimento legalmente previsto para o reconhecimento da fraude contra credores, caracterizando violação ao devido processo legal. A declaração de ineficácia das doações, com fundamento na desconsideração da personalidade jurídica, afigura-se inadequada, diante da ausência dos pressupostos legais e da adoção de rito processual equivocado.
Dessa forma, é juridicamente incorreta a utilização da desconsideração da personalidade jurídica como fundamento para alcançar patrimônio de terceiros não sócios, ainda que beneficiados por atos dos sócios atingidos, devendo eventual alegação de fraude ser submetida ao devido processo legal mediante ação própria.
RESUMO: O instituto da desconsideração da personalidade jurídica, previsto no art. 50 do CC/2002, não se presta para atribuir responsabilidade patrimonial a terceiros que não têm qualquer espécie de vínculo jurídico com as sociedades atingidas, ainda que se cogite da ocorrência de confusão ou desvio patrimonial, a ensejar suposta fraude contra credores.
REsp 1.792.271-SP, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por maioria, julgado em 1º/4/2025.