Ao julgar o REsp 2.000.449-MT, o STJ analisou a controvérsia sobre a aplicabilidade do prazo de caducidade de 2 anos, previsto no art. 3º da Lei nº 4.132/1962, às desapropriações destinadas à titulação de terras às comunidades remanescentes de quilombos. A questão central é se essa limitação temporal, aplicada às desapropriações comuns, pode restringir os processos voltados à efetivação dos direitos das comunidades quilombolas.
A Constituição Federal, no art. 68 do ADCT, assegura às comunidades quilombolas a posse e a propriedade das terras que tradicionalmente ocupam, em razão de seus vínculos históricos e culturais com o território. Além disso, o art. 216, § 1º, da Constituição protege o patrimônio cultural, reforçando a preservação da identidade cultural das comunidades quilombolas.
Essa proteção constitucional confere às desapropriações quilombolas um caráter diferenciado em relação às desapropriações comuns, reguladas pelo Decreto-Lei nº 3.365/1941 (utilidade pública) ou pela Lei nº 4.132/1962 (interesse social). O objetivo dessas desapropriações não é meramente econômico ou administrativo, mas sim a reparação histórica e a promoção de direitos fundamentais.
O prazo de caducidade nas desapropriações comuns tem como objetivo evitar a perpetuação de uma situação de instabilidade jurídica, impedindo que a propriedade fique sujeita ao poder expropriatório de forma indefinida. Contudo, no contexto das comunidades quilombolas, essa lógica não se aplica. Aqui, o foco é a efetivação de direitos constitucionais fundamentais, já reconhecidos pelo Estado por meio de processos administrativos prévios de identificação, reconhecimento e delimitação das terras ocupadas tradicionalmente.
O Decreto nº 4.887/2003, que regulamenta a titulação de terras quilombolas, não estabelece prazo de caducidade para os decretos expropriatórios, refletindo uma escolha deliberada do legislador para garantir a proteção desses direitos. A imposição de prazos nesse contexto comprometeria a eficácia do direito constitucional das comunidades quilombolas à terra e à preservação de sua identidade cultural.
A desapropriação destinada à titulação de terras quilombolas não é um instrumento para o reconhecimento de direitos, mas sim para sua formalização e efetivação. Trata-se da última etapa de um processo que já reconheceu administrativamente a ocupação tradicional e a titularidade do direito das comunidades quilombolas sobre o território.
Como tal, a aplicação do prazo de caducidade seria incompatível com a natureza especial desse processo. A caducidade, prevista no art. 3º da Lei nº 4.132/1962, destina-se a regular situações patrimoniais ordinárias, não alcançando o regime jurídico especial das desapropriações quilombolas, que têm fundamento constitucional e caráter de política afirmativa.
Portanto, o STJ concluiu que o prazo de caducidade de 2 anos, previsto na Lei nº 4.132/1962, não se aplica às desapropriações para titulação de terras às comunidades quilombolas. Esse entendimento reflete a necessidade de respeitar a especialidade normativa e a finalidade reparatória dessas desapropriações, alinhando-se aos princípios constitucionais de proteção ao patrimônio cultural e à promoção de direitos fundamentais.
Dessa forma, o tratamento diferenciado às desapropriações quilombolas é juridicamente justificado e assegura a plena realização do direito dessas comunidades à terra, sem comprometer a integridade de seu modo de vida e identidade cultural.
RESUMO: A desapropriação para comunidades quilombolas possui caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, não se aplicando a esse procedimento os prazos de caducidade das desapropriações comuns.
REsp 2.000.449-MT, Rel. Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Turma, por unanimidade, julgado em 26/11/2024, DJe 9/12/2024.