A decisão do STF que determinou a suspensão da plataforma X (antigo Twitter) no Brasil gerou um intenso debate sobre os limites entre a necessidade de cumprimento de decisões judiciais e a preservação de serviços que transcendem o interesse particular de seus proprietários, assumindo relevância pública.
Enquanto a sanção imposta pela Corte visava garantir a obediência a ordens judiciais e a manutenção da ordem jurídica, a medida trouxe à tona uma dicotomia significativa: a plataforma, apesar de ser um patrimônio privado, desempenha um papel fundamental na sociedade moderna como um canal de comunicação, informação e exercício da liberdade de expressão. Essa tensão revela os desafios que surgem quando sanções judiciais, embora juridicamente fundamentadas, impactam diretamente direitos fundamentais, como o acesso à informação e a participação no debate público.
Obrigatoriedade de cumprimento de decisões judiciais no Brasil
A obrigatoriedade de cumprimento de decisões judiciais é um princípio fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. Segundo o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Além disso, o artigo 77, IV, do CPC estabelece que todos devem cumprir as ordens judiciais, sendo passíveis de sanções aqueles que descumprirem essas determinações.
No caso específico, o X foi intimado a cumprir diversas ordens judiciais relacionadas ao bloqueio de perfis que incitavam crimes e desrespeitavam a soberania nacional. O descumprimento reiterado dessas ordens fundamentou a adoção de medidas coercitivas, como a suspensão dos serviços da plataforma no Brasil e a aplicação de multas. Essas medidas encontram amparo no artigo 139, IV, do CPC, que autoriza o juiz a adotar medidas necessárias para garantir a efetividade das decisões judiciais.
Necessidade de empresa estrangeira manter representante legal no país
De acordo com o artigo 1.134, § 1º, V, do Código Civil, e com o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014), empresas estrangeiras que atuam no Brasil devem manter um representante legal no país com poderes expressos para receber citações judiciais e responder judicialmente pela empresa.
Essa exigência visa assegurar que as empresas que operam no Brasil estejam sujeitas ao ordenamento jurídico nacional, evitando a atuação fora do alcance da fiscalização e controle do poder público.
Portanto, a retirada de um representante legal para garantir o cumprimento das ordens judiciais foi vista como uma manobra para evitar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário, trazendo mais um fundamento para a adoção de medidas mais severas, como o bloqueio das atividades da plataforma.
Todavia, a decisão monocrática suscita uma série de preocupações jurídicas, especialmente no que diz respeito à sua conformidade com princípios fundamentais do processo e do direito penal.
Aplicação de multa a quem utilizar VPN ou outros subterfúgios para acessar o X
O item 3 da decisão, que fixou uma multa diária de R$ 50.000,00 às pessoas físicas ou jurídicas que utilizarem o X por meio de VPN ou outros subterfúgios, apresenta várias questões jurídicas problemáticas, que merecem uma análise crítica, especialmente à luz dos princípios constitucionais e processuais.
Princípio da Legalidade e da Tipicidade
O princípio da legalidade, consagrado no artigo 5º, II, da Constituição Federal, determina que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Para que uma conduta seja passível de sanção, é necessário que ela esteja tipificada em lei de forma clara e precisa. No caso em questão, a simples utilização de VPNs ou outros subterfúgios tecnológicos para acessar uma plataforma não está claramente definida como uma infração legal que justifique a aplicação de uma multa pecuniária.
A utilização de VPNs, por si só, não configura crime ou ato ilícito generalizado na legislação brasileira. VPNs são ferramentas legítimas amplamente utilizadas para garantir a privacidade online, acessar conteúdos em diferentes jurisdições e proteger dados pessoais. A imposição de uma multa por seu uso, sem que haja uma previsão legal clara para tanto, pode ser considerada uma violação do princípio da tipicidade, que exige que a conduta sancionável seja previamente definida e específica.
Princípio do Devido Processo Legal
O devido processo legal, previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição, assegura que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem um processo legal adequado. Ao fixar uma multa diária diretamente a pessoas físicas ou jurídicas que utilizarem VPNs, sem que essas pessoas tenham sido previamente identificadas, notificadas e lhes tenha sido concedida a oportunidade de defesa, a decisão parece atropelar o devido processo legal.
Além disso, as multas pecuniárias só podem ser aplicadas após a observância de um procedimento judicial ou administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa, conforme o artigo 5º, LV, da Constituição. A decisão do STF, ao prever sanções a terceiros que não fazem parte do processo, viola esses princípios, ao impor uma penalidade sem a devida apreciação individualizada dos fatos e sem oferecer a oportunidade de contestação.
Princípio da Intranscendência das Penas
O princípio da intranscendência das penas, disposto no artigo 5º, XLV, da Constituição, estabelece que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. Esse princípio impede que sanções penais ou administrativas sejam estendidas a terceiros que não sejam diretamente responsáveis pela conduta ilícita. No caso em análise, a decisão do STF estende a aplicação de multas a usuários comuns da internet, que, embora possam estar tentando contornar a suspensão da plataforma, não são os autores da conduta que motivou a penalidade original aplicada ao X.
Além disso, essas pessoas não têm vínculo direto com o processo que motivou a suspensão do X, o que torna a aplicação da multa ainda mais problemática sob o prisma da intranscendência. Penalizar usuários finais, que utilizam VPNs, equipara suas ações àquelas da empresa sancionada, o que pode ser visto como uma extensão indevida da responsabilidade penal ou administrativa.
Mídias sociais como bens de interesse público
A análise da decisão do Ministro Alexandre de Moraes pode ser enriquecida ao considerar o contexto mais amplo de regulação das mídias sociais, em especial o debate sobre o Projeto de Lei das Fake News (PL n. 2.630/2020).
Um dos argumentos centrais que fundamentam o projeto de regulação das mídias sociais é a ideia de que essas plataformas não podem ser tratadas simplesmente como patrimônios privados dos seus donos ou sócios, uma vez que elas desempenham um papel crucial na disseminação de informação e no exercício da liberdade de expressão, ambos pilares essenciais para a democracia.
O PL das Fake News propõe a regulamentação das plataformas digitais com base no entendimento de que, apesar de serem propriedades privadas, as redes sociais exercem funções que transcendem o interesse privado, atingindo uma dimensão pública relevante.
As plataformas, ao intermediarem o direito à liberdade de expressão e à informação, adquirem uma natureza híbrida, onde interesses privados dos proprietários e a função pública das mídias sociais coexistem, devendo, portanto, serem reguladas de forma que garantam o respeito à ordem democrática e aos direitos fundamentais.
Suspensão do X e o tratamento como bem privado
No entanto, ao determinar a suspensão da plataforma X, o STF pareceu tratar a rede social como um bem exclusivamente privado, sujeito às sanções típicas de uma empresa que descumpre decisões judiciais. A decisão do Ministro Alexandre de Moraes impôs restrições que culminaram na suspensão do serviço, considerando a plataforma como uma extensão direta dos interesses e responsabilidades de seu proprietário.
Esse enfoque, embora juridicamente justificável dentro do contexto do descumprimento de ordens judiciais, pode ser criticado por não considerar adequadamente o impacto que a suspensão de uma rede social tão abrangente pode ter sobre o interesse público. A suspensão de uma plataforma que é utilizada por milhões de pessoas para se informar, comunicar e participar do debate público vai além de uma simples sanção a uma empresa privada — ela afeta diretamente o exercício da liberdade de expressão e o acesso à informação de toda a população.
Contradição entre Regulação e Sanção
O contraste entre o tratamento dado à plataforma X como um bem privado passível de suspensão e a visão regulatória que fundamenta o PL das Fake News evidencia uma contradição. Se, por um lado, a regulação das mídias sociais propõe que elas devem ser vistas como instrumentos de interesse público que servem à sociedade, garantindo a pluralidade de vozes e a disseminação de informações, por outro, a suspensão total de uma dessas plataformas parece ignorar esse papel público e tratar a rede social como um bem que pode ser simplesmente retirado do ar sem considerar suas consequências sociais.
Ao suspender a plataforma X, o STF focou na penalização de uma empresa privada sem considerar plenamente as consequências sociais dessa medida. A retirada do ar de uma rede social amplamente utilizada afeta diretamente o direito da população de acessar informações e participar do debate público, gerando um impacto negativo na esfera pública de comunicação. Essa abordagem suscita críticas quanto à proporcionalidade da medida e à necessidade de se encontrar um equilíbrio entre a imposição de sanções e a preservação do interesse público.
Em última análise, a decisão do STF expõe a tensão entre a obrigação de garantir o cumprimento das decisões judiciais e a necessidade de proteger direitos fundamentais que são exercidos através dessas plataformas. Embora a sanção tenha sido motivada pelo legítimo objetivo de impor o respeito às ordens judiciais, a medida adotada pode ter sacrificado, de maneira desproporcional, o acesso a um serviço essencial para a democracia e o exercício da cidadania.
A situação destaca a importância de desenvolver mecanismos de regulação e sanção que levem em conta tanto a necessidade de responsabilização das empresas quanto a preservação das funções públicas que essas plataformas desempenham.