O entendimento do STF e a distinção entre solidariedade, repartição de competências e ônus financeiro
No âmbito do Direito Constitucional, em especial do Direito à Saúde, não é mais novidade que a responsabilidade pela prestação dos serviços relacionados à saúde é solidária entre os diversos entes da Federação, visto se tratar de competência material comum, em observância ao quanto preconiza os artigos 23, II e 196 da Constituição Federal de 1988:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(…)
II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
(…)
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
A matéria, inclusive, conta com farta jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, que já reconheceu a desnecessidade de formação de litisconsórcio passivo necessário, merecendo destaque o julgamento do RE 855178, ocorrido em 05/03/2015, cuja repercussão geral foi reconhecida e a TESE foi fixada no seguinte sentido:
Tema 793 da Repercussão Geral: O tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, sendo responsabilidade solidária dos entes federados, podendo figurar no polo passivo qualquer um deles em conjunto ou isoladamente.
Todavia, a discussão ganhou novos contornos quando do julgamento dos embargos de declaração no RE 855178, visto que a Suprema Corte passou a estabelecer distinção entre a responsabilidade solidária, a repartição de competências e o ônus financeiro, fixando a seguinte TESE, ainda no Tema 793 da R.G.:
Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
Nessa linha de entendimento, o STF estabeleceu que nos casos em que há um responsável previamente determinado, seja em decorrência de norma legal, seja por pactuação infralegal entre os gestores, sendo imposta a responsabilidade a um outro ente federado, visto que há solidariedade e não há litisconsórcio passivo necessário, deve o cumprimento ser direcionado conforme as regras de repartição de competências, observando-se o devido ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
A matéria, inclusive, já havia sido objeto da II Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça, onde foi apresentado o seguinte Enunciado:
60 – Saúde Pública – A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento.
Ainda no julgamento dos embargos de declaração no RE 855178, o STF desenvolveu, em obiter dicta, as seguintes teses a respeito da solidariedade em matéria de saúde:
i) A obrigação a que se relaciona a reconhecida responsabilidade solidária é a decorrente da competência material comum prevista no artigo 23, II, CF, de prestar saúde, em sentido lato, ou seja: de promover, em seu âmbito de atuação, as ações sanitárias que lhe forem destinadas, por meio de critérios de hierarquização e descentralização (arts. 196 e ss. CF);
ii) Afirmar que “o polo passivo pode ser composto por qualquer um deles (entes), isoladamente ou conjuntamente” significa que o usuário, nos termos da Constituição (arts. 196 e ss.) e da legislação pertinente (sobretudo a lei orgânica do SUS n. 8.080/90) tem direito a uma prestação solidária, nada obstante cada ente tenha o dever de responder por prestações específicas;
iii) Ainda que as normas de regência (Lei 8.080/90 e alterações, Decreto 7.508/11, e as pactuações realizadas na Comissão Intergestores Tripartite) imputem expressamente a determinado ente a responsabilidade principal (de financiar a aquisição) pela prestação pleiteada, é lícito à parte incluir outro ente no polo passivo, como responsável pela obrigação, para ampliar sua garantia, como decorrência da adoção da tese da solidariedade pelo dever geral de prestar saúde;
iv) Se o ente legalmente responsável pelo financiamento da obrigação principal não compuser o polo passivo da relação jurídico- processual, compete a autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento;
v) Se a pretensão veicular pedido de tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas (em todas as suas hipóteses), a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (art. 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação;
vi) A dispensa judicial de medicamentos, materiais, procedimentos e tratamentos pressupõe ausência ou ineficácia da prestação administrativa e a comprovada necessidade, observando, para tanto, os parâmetros definidos no artigo 28 do Decreto federal n. 7.508/11.
Portanto, a obrigação continua a ser solidária, não havendo necessidade de formação de litisconsórcio passivo necessário (salvo nos casos de tratamentos não incluídos nas políticas públicas, hipótese em que a presença da União é indispensável), podendo o autor demandar um ou mais entes públicos e o cumprimento da obrigação deve ser direcionada conforme regras de repartição de competências, sendo possível o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.