A inovação legislativa e a necessária limitação de sua interpretação
Tema bastante recorrente não apenas na jurisprudência pátria, mas também em provas de concurso, é o que versa acerca da possibilidade de acumulação de cargos públicos.
Em artigo já publicado nesta plataforma (AQUI) tratamos sobre a definição de cargo técnico ou científico para fins de acumulação de cargos públicos, expondo o posicionamento adotado pelo STJ no RMS 42392/AC que firmou o entendimento no sentido de que cargo técnico, para fins de acumulação de cargos públicos, é aquele que requer conhecimento específico na área de atuação profissional, com habilitação específica de grau universitário ou profissionalizante de 2º grau.
A presente análise, todavia, pretende aprofundar um pouco mais o tema e trazer à baila o entendimento acerca da possibilidade, ou não, de acumulação de cargos públicos civis pelos militares.
O assunto estava pacificado desde 2014 quando da publicação da Emenda Constitucional 77/14 que alterou a redação do inciso II do art. 142 da CF/88, passando a assim estabelecer:
II – o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea “c”, será transferido para a reserva, nos termos da lei;
Portanto, o legislador esclareceu que o servidor castrense em atividade apenas poderá acumular a função militar com um cargo ou emprego privativo de profissionais de saúde, nos termos do art. 37, XVI, “c”, da CF/88, devendo ser transferido para a reserva nas demais situações.
Assim, o entendimento era de que o militar não poderia acumular suas funções militares com qualquer outra civil, devendo atuar em regime de exclusividade, salvo a possibilidade de acumulação com cargo privativo de profissional de saúde.
Todavia, a Emenda Constitucional nº 101/19 acabou por incluir o §3º ao artigo 42 da CF/88, com a seguinte redação, in verbis:
§ 3º Aplica-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios o disposto no art. 37, inciso XVI, com prevalência da atividade militar.
Em um primeiro momento, percebe-se que o Poder Constituinte Derivado Reformador acabou por expandir as possibilidades de acumulação de cargos públicos civis por militares, não estando estes mais limitados à hipótese da alínea “c” do inciso XVI do artigo 37, mas podendo acumular cargos em quaisquer das situações previstas na norma constitucional mencionada.
Todavia, a redação, salvo melhor juízo, não foi das melhores, vez que pode ocasionar dúvidas quanto ao número de cargos a serem acumulados. Por exemplo, a alínea “a” prevê a possibilidade de acumulação de dois cargos de professor, então o militar poderia acumular três cargos (um militar e dois de professor)? À primeira vista, a resposta deve ser negativa, já que a regra é a impossibilidade de acumulação e, pelas normas de hermenêutica, a exceção deve ser interpretada de forma restritiva, de modo que ao militar é possível acumular suas funções militares com um cargo de professor.
Outro detalhe que não pode passar desapercebido, é que a Emenda Constitucional 101/19 fez menção expressa apenas aos militares dos Estados e do Distrito Federal, não estendendo a possibilidade de acumulação aos militares Federais.
Portanto, enquanto aos militares do Estados e do Distrito Federal é possível a acumulação do cargo militar com um cargo de professor; ou com um cargo técnico ou científico; ou ainda com um cargo de profissional da saúde, aos militares Federais permanece a limitação imposta no inciso II do art. 142 da CF/88, de modo que o servidor castrense federal apenas pode acumular um cargo militar com um cargo de profissional da saúde.
Por seu turno, é mister destacar que, em qualquer das hipóteses constitucionalmente previstas em que seja permitida a acumulação de cargos, é indispensável que seja observada a compatibilidade de horários, devendo tal compatibilidade ser analisada no caso concreto, não sendo possível que norma infraconstitucional imponha limite de 60 horas semanais, conforme remansosa jurisprudência do STF e do STJ:
A acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal. RE 1.094.802 AgR-PE.
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS REMUNERADOS. ÁREA DA SAÚDE. LIMITAÇÃO DA CARGA HORÁRIA. IMPOSSIBILIDADE. COMPATIBILIDADE DE HORÁRIOS. REQUISITO ÚNICO. AFERIÇÃO PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. PRECEDENTES DO STF. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. A Primeira Seção desta Corte Superior tem reconhecido a impossibilidade de acumulação remunerada de cargos ou empregos públicos privativos de profissionais da área de saúde quando a jornada de trabalho for superior a 60 (sessenta) horas semanais.
2. Contudo, ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, posicionam-se “[…] no sentido de que a acumulação de cargos públicos de profissionais da área de saúde, prevista no art. 37, XVI, da CF/88, não se sujeita ao limite de 60 horas semanais previsto em norma infraconstitucional, pois inexiste tal requisito na Constituição Federal” (RE 1.094.802 AgR, Relator Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 11/5/2018, DJe 24/5/2018).
3. Segundo a orientação da Corte Maior, o único requisito estabelecido para a acumulação é a compatibilidade de horários no exercício das funções, cujo cumprimento deverá ser aferido pela administração pública. Precedentes do STF.
4. Adequação do entendimento da Primeira Seção desta Corte ao posicionamento consolidado no Supremo Tribunal Federal sobre o tema.
5. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.767.955/RJ, relator Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, julgado em 27/3/2019, DJe de 3/4/2019.)
Por fim, e não menos importante, em qualquer caso de acumulação de cargos públicos é preciso observar a Tese firmada no RE 602043, julgado em 27/04/2017:
Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, inciso XI, da Constituição Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público.
Como é cobrado em concursos?
A matéria foi objeto de questão no concurso para provimento do cargo de Procurador do Estado da Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais/2022:
José é oficial da Polícia Militar do Estado Delta há dez anos. No ano de 2022, José foi aprovado em concurso público para o cargo efetivo de professor no mesmo Estado Delta, com carga horária de 20 horas semanais.
No ato de convocação para ser nomeado para o cargo de professor, José assinou uma declaração indicando que é oficial da Polícia Militar e pretende acumular ambos os cargos.
Instado a ofertar parecer sobre o caso, o Procurador do Estado Delta esclareceu que, de acordo com a Constituição da República, a acumulação pretendida por José é
(A) vedada, por expressa proibição no texto constitucional.
(B) permitida, se houver compatibilidade de horários.
(C) vedada, pois o cargo de oficial da Polícia Militar não é considerado cargo técnico ou científico.
(D) permitida, apenas se houver concordância expressa do Comandante-Geral da Polícia Militar.
(E) vedada, em qualquer hipótese, pois o cargo de oficial da Polícia Militar é, por natureza, de dedicação exclusiva.
Resposta: B.