Qual é a natureza jurídica da relação entre motoristas de aplicativos e as plataformas digitais e como isso pode definir a competência jurisdicional para julgar demandas decorrentes dessa relação?
O ordenamento jurídico brasileiro prevê duas formas principais de enquadramento para prestadores de serviços: como empregados ou como autônomos. A Consolidação das Leis do Trabalho, nos artigos 2º e 3º, estabelece quatro requisitos cumulativos para a configuração do vínculo empregatício: pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação.
Para que a relação entre o motorista de aplicativo e a plataforma digital seja caracterizada como empregatícia, todos esses requisitos devem estar presentes. No entanto, o STJ entendeu que, no caso dos motoristas de aplicativos:
- Pessoalidade: embora o serviço seja prestado pessoalmente pelo motorista, este requisito isolado não é suficiente para caracterizar o vínculo de emprego;
- Não eventualidade: este requisito não é atendido, visto que os motoristas têm total liberdade para decidir quando e com que frequência trabalharão. Muitos utilizam a atividade como complemento de renda, sem uma rotina fixa ou obrigatória;
- Onerosidade: está presente, pois o motorista recebe pelo serviço prestado. Contudo, a presença deste elemento também não é suficiente por si só;
- Subordinação: não se verifica subordinação jurídica direta, característica essencial do vínculo empregatício. As plataformas digitais, embora imponham padrões de qualidade e condutas mínimas (como avaliação do serviço e condições do veículo), não exercem controle direto ou contínuo sobre a forma de execução do trabalho, diferentemente do que ocorre em uma relação típica de emprego.
Diante da ausência de não eventualidade e subordinação, o STJ concluiu que os motoristas de aplicativos exercem suas atividades de forma autônoma. Esta atividade é regulada pela Lei nº 12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana), que reconhece o transporte privado individual de passageiros, intermediado por plataformas digitais, como uma prestação de serviço de natureza privada.
A natureza autônoma da relação implica que eventuais litígios relacionados a descumprimento contratual por parte da plataforma digital não configuram uma relação de trabalho. Portanto, não compete à Justiça do Trabalho julgar tais demandas. Como a controvérsia é de natureza civil, envolvendo o descumprimento de um contrato de prestação de serviços, a competência para julgamento é da Justiça Comum.
No caso específico analisado pelo STJ, o autor da ação pleiteava a reativação de sua conta na plataforma, suspensa unilateralmente, e a reparação por danos decorrentes dessa suspensão. Como a causa de pedir estava fundamentada em questões contratuais civis, e não na existência de vínculo empregatício, o STJ reafirmou a competência da Justiça Comum para julgar o caso.
Portanto, a relação entre motoristas de aplicativos e plataformas digitais é de natureza civil, afastando a configuração de vínculo empregatício e, consequentemente, a competência da Justiça do Trabalho para julgar essas demandas.
REsp 2.144.902-MG, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 3/12/2024, DJEN 6/12/2024.