Na última terça-feira (30/05/23), a Câmara dos Deputados aprovou o texto-base do PL 490/2007 em que define o marco temporal para demarcação de terras indígenas, além de transferir do Executivo para o Legislativo a competência para a realização das referidas demarcações.
Inicialmente, é preciso entender conceitualmente o que se trata a expressão “marco temporal”.
A bem da verdade, se traduz em uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas teriam direito de permanecer ocupando apenas as terras que já ocupavam (ou disputavam) até 05/10/88, data de promulgação da Constituição. Dito de outro modo, apenas seriam consideradas como “terras que tradicionalmente ocupam”, nos termos do art. 231 da Constituição da República, aquelas já ocupadas na data mencionada, sendo este o “marco temporal” para aferir a existência, ou não, de direitos originários sobre a terra pela população indígena.
A referida tese tem origem em Parecer da lavra da Advocacia-Geral da União, de 2009, sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi usado.
Dentre os diversos argumentos utilizados para fundamentar a tese do “marco temporal” se destacam os seguintes: risco de expansão ilimitada para áreas já incorporadas ao mercado imobiliário; violação à soberania e independência nacional; proteção do princípio da segurança jurídica; violação à normas de proteção ambiental, etc.
Por outro lado, os fundamentos que advogam de forma contrária à tese do “marco temporal” afirmam que haverá ameaça à sobrevivência de muitas comunidades indígenas e de florestas; trará insegurança jurídica, pois muitos conflitos já foram devidamente pacificados; o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário (anterior à própria formação do Estado), dentre outros.
Voltando a analisar o caso concreto ocorrido nessa semana, de acordo com a norma aprovada, a demarcação de terras indígenas fica restrita àquelas já tradicionalmente ocupadas por esses povos em 05/10/88, data da promulgação da CF e, além disso, o projeto transfere ao Legislativo a prerrogativa da demarcação dos territórios.
A princípio, a norma viola o art. 231 da Constituição da República por dois motivos:
Primeiro, porque a CF não delegou ao legislador ordinário a atribuição para definir o que seriam as “terras que tradicionalmente ocupam”, sendo inconstitucional norma infralegal que restrinja direito fundamental.
Ao contrário, a norma constitucional, no §1º do art. 231, conceitua o que são as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios: as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Ora, se o constituinte originário pretendesse limitar o conceito das terras tradicionalmente ocupadas o teria feito, fixando o tal “marco temporal” para fins de delimitação temporal.
Segundo, porque o art. 231 atribuiu à UNIÃO a competência para a demarcação o que, naturalmente, se trata de atribuição do PODER EXECUTIVO, pois versa sobre competência MATERIAL, não cabendo ao Legislativo interferir, in verbis:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Trata-se de lição comezinha de Direito Constitucional a distinção entre competência material e competência legislativa, não havendo como fazer qualquer confusão quanto ao tema. Tome-se como exemplo o art. 21 da CF, e seus incisos, em que define ser competência da União manter relações com Estados estrangeiros, assegurar a defesa nacional e emitir moeda, dentre outras atribuições. É evidente que se trata de alçada atinente ao Poder Executivo, por se tratar de competência MATERIAL. A contrario sensu, caso se entendesse que a atribuição da União seria extensível ao Poder Legislativo, se estaria diante da improvável situação em que o Congresso Nacional poderia manter relações diplomáticas com outros países ou emitir moeda, o que sequer se poderia imaginar.
A justificativa, da lavra do Relator do PL 490/2007, de que o art. 48 da CF autorizaria o Congresso a legislar sobre o tema não merece prosperar, pois o dispositivo legal versa acerca da competência LEGISLATIVA e não da competência material:
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…)
Portanto, o PL 490/2007 incorre em notório vício de inconstitucionalidade, seja porque restringe indevidamente um direito fundamental amplo, seja porque usurpa competência do Poder Executivo.
E quais os prejuízos que podem advir da inovação legislativa?
Hoje, o processo de demarcação tramita no âmbito administrativo, mais especificamente perante a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), órgão técnico capacitado de assistência ao índio, onde são realizados estudos com participação de peritos e antropólogos, dentre outros profissionais. Com a aprovação do PL, pretende-se esvaziar a competência administrativa e transferi-la para o Legislativo, exigindo-se a edição de lei e subtraindo a atividade técnica da FUNAI.
Em outras palavras, o Poder Legislativo acaba por atrair para si a competência para realizar a demarcação das terras indígenas o que, naturalmente, enfraquece toda a estrutura organizacional-administrativa que é especificamente capacitada para tanto. Na prática, o processo que já era moroso em razão das averiguações técnicas necessárias, será praticamente inviabilizado, uma vez que a edição de lei se insere no poder discricionário da Casa Legislativa, que pode interditar qualquer debate a respeito da garantia do direito fundamental à terra da população indígena.
Não fosse isso suficiente, o PL 490/2007 também autoriza a possibilidade de construção de empreendimentos nas terras e a exploração de seus recursos naturais.
Dito de outro modo, o Congresso poderá autorizar a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, a pesquisa e lavra mineral, a instalação de equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte em terras indígenas sem a devida consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI, em evidente prejuízo aos povos originários e contrariando a Convenção nº 169 da OIT.
E isso pode interferir no julgamento do RE 1.017.365 pelo STF?
A priori não, porque o STF está julgando um caso concreto (Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores), em Recurso Extraordinário, onde haverá eventual cotejo entre a decisão impugnada e a norma constitucional. Mas nada impede que a matéria seja submetida à Corte no futuro, em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
Portanto, é possível chegar à seguinte conclusão: a demarcação de terras indígenas é matéria constitucional, cujo instrumento de alteração adequado é a Emenda Constitucional. Ou seja, caso haja interesse político na fixação de determinado “marco temporal”, ou no deslocamento da competência do Executivo para o Legislativo, seria necessária uma alteração constitucional, não sendo viável que tal modificação ocorra no âmbito infraconstitucional.