É possível penhorar o imóvel residencial da entidade familiar quando ele foi oferecido como garantia hipotecária em favor de dívida assumida por terceiros?
Para responder, é preciso se debruçar sobre a interpretação do art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, que dispõe sobre a exceção à impenhorabilidade do bem de família nos casos em que o imóvel residencial é oferecido como garantia real, notadamente sob a forma de hipoteca, pelo casal ou pela entidade familiar. Especificamente, examina-se a necessidade de comprovação do benefício à entidade familiar para o afastamento da impenhorabilidade, bem como a distribuição do ônus da prova quando a garantia for prestada em favor de sociedade da qual os proprietários do bem são sócios.
A Lei n. 8.009/1990 confere proteção legal ao imóvel residencial da entidade familiar, tornando-o, via de regra, impenhorável. Essa proteção tem natureza de ordem pública e é instituída automaticamente, ex lege, em razão de sua destinação à moradia do núcleo familiar.
Contudo, o art. 3º da referida norma prevê hipóteses excepcionais em que a impenhorabilidade não subsiste. Dentre elas, o inciso V autoriza a penhora do bem de família quando este tiver sido oferecido em hipoteca pelo casal ou pela entidade familiar, como garantia de dívida assumida.
No julgamento do Tema Repetitivo n. 1.261, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu importante baliza hermenêutica para compatibilizar a eficácia das garantias reais com a proteção constitucional à moradia. Fixou-se que a renúncia à impenhorabilidade decorrente da constituição voluntária da hipoteca somente será válida se demonstrado que a dívida foi contraída em benefício da entidade familiar.
Para tanto, o STJ distribuiu o ônus da prova conforme o seguinte critério: (a) se o imóvel for dado em garantia por um dos sócios de pessoa jurídica, presume-se a impenhorabilidade, incumbindo ao credor provar que a dívida da empresa beneficiou a entidade familiar; (b) se os únicos sócios da pessoa jurídica forem os proprietários do imóvel, presume-se a penhorabilidade, cabendo aos executados demonstrar que a dívida não reverteu em favor do núcleo familiar.
A Corte também destacou a relevância do princípio da boa-fé objetiva e da vedação ao comportamento contraditório (nemo potest venire contra factum proprium), ao reconhecer que o oferecimento voluntário do imóvel em hipoteca gera legítima expectativa no credor quanto à sua excussão em caso de inadimplemento. Assim, a posterior alegação de impenhorabilidade, sem a devida comprovação de que a obrigação não beneficiou a família, configura atitude contrária à boa-fé.
Portanto, de acordo com o entendimento consolidado no Tema Repetitivo n. 1.261 do STJ, a exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990 deve ser interpretada de forma restritiva, condicionada à demonstração de que a dívida garantida beneficiou a entidade familiar. A distribuição do ônus da prova varia conforme a composição societária da empresa favorecida, impondo ao credor ou ao devedor o dever de demonstrar a existência ou a ausência de proveito familiar, conforme o caso. Tal interpretação assegura a necessária proteção à moradia, sem frustrar a eficácia das garantias reais livremente constituídas, em respeito aos princípios da boa-fé e da segurança jurídica.
TESE:
- I) A exceção à impenhorabilidade do bem de família nos casos de execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, prevista no art. 3º, V, da Lei n. 8.009/1990, restringe-se às hipóteses em que a dívida foi constituída em benefício da entidade familiar;
- II) Em relação ao ônus da prova, a) se o bem for dado em garantia real por um dos sócios de pessoa jurídica, é, em regra, impenhorável, cabendo ao credor o ônus de comprovar que o débito da pessoa jurídica se reverteu em benefício da entidade familiar; e b) caso os únicos sócios da sociedade sejam os titulares do imóvel hipotecado, a regra é da penhorabilidade do bem de família, competindo aos proprietários demonstrar que o débito da pessoa jurídica não se reverteu em benefício da entidade familiar.
REsp 2.093.929-MG, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 5/6/2025, DJEN 13/6/2025. (Tema 1261).