Dos Temas 531 e 1.009 dos recursos repetitivos representativos da controvérsia no STJ e da necessária distinção entre erro de fato e erro de direito
A matéria referente à necessidade, ou não, de o servidor público devolver à Administração valores eventualmente pagos a maior sempre gerou muito debate doutrinário e jurisprudencial, justamente por envolver o conflito entre diplomas legais e princípios jurídicos que amparam tanto a vertente que defende a devolução, quanto aquela que advoga pela não devolução do montante.
Inicialmente, é preciso rememorar que a jurisprudência do STJ há muito já se consolidou no sentido de que é incabível a restituição ao erário dos valores recebidos de boa-fé pelo servidor público em razão de interpretação equivocada da lei pela Administração.
Essa, inclusive, foi a Tese firmada no Tema Repetitivo 531 do STJ:
Quando a Administração Pública interpreta erroneamente uma lei, resultando em pagamento indevido ao servidor, cria-se uma falsa expectativa de que os valores recebidos são legais e definitivos, impedindo, assim, que ocorra desconto dos mesmos, ante a boa-fé do servidor público.
A Advocacia Geral da União possui Súmula no mesmo sentido:
Súmula 34-AGU: Não estão sujeitos à repetição os valores recebidos de boa-fé pelo servidor público, em decorrência de errônea ou inadequada interpretação da lei por parte da Administração Pública.
Portanto, presume-se que, ao receber determinada quantia em razão de interpretação equivocada da lei pela Administração, o servidor público está de boa-fé e, em razão disso, resta indevido o eventual ressarcimento ao erário.
Todavia, em julgamento recente pelo STJ, em outro recurso especial submetido à sistemática dos recursos repetitivos representativos da controvérsia, aquela Corte acabou por realizar um distinguishing quanto ao entendimento firmado no Tema 531.
Ao analisar o Tema Repetitivo 1.009, o STJ entendeu que estará sujeito à devolução os valores recebidos a maior pelo servidor público decorrente de erro administrativo, restando firmada a seguinte tese:
Os pagamentos indevidos aos servidores públicos decorrentes de erro administrativo (operacional ou de cálculo), não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela Administração, estão sujeitos à devolução, ressalvadas as hipóteses em que o servidor, diante do caso concreto, comprova sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.
Portanto, nesta segunda hipótese o STJ não presume a boa-fé do servidor público, entendendo que esta tem que ser devidamente comprovada caso o pagamento indevido tenha ocorrido em razão de erro operacional ou de cálculo.
Nesse sentido, ante à distinção realizada pelo STJ, é preciso traçar um paralelo entre as duas situações descritas que, a par de parecerem semelhantes, guardam nítidas e expressivas diferenças.
Na primeira situação (Tema 531), o STJ entendeu que a interpretação equivocada da lei se traduz em ERRO DE DIREITO, o que enseja a impossibilidade de restituição ao erário em observância ao princípio da legítima confiança, na medida em que o servidor tem justa expectativa de que são legais os valores pagos pela Administração Pública, vez que submetida à legalidade estrita.
Por sua vez, no segundo caso (Tema 1.009) o Tribunal entendeu que a situação se trata de ERRO DE FATO, o que afasta, prima facie, a boa-fé do servidor, devendo esta ser comprovada, principalmente com a demonstração de que não era possível constatar o pagamento indevido. Em outras palavras, caso ocorra um pagamento a maior em razão de erro administrativo (operacional ou de cálculo), não se presumirá a boa-fé, devendo ser analisado caso a caso.
Por fim, e não menos importante, cumpre trazer à lume o entendimento do STF a respeito do tema, que acaba por não distinguir as duas situações, como o STJ fez.
Para o STF, as situações devem ser analisadas caso a caso, não sendo possível a restituição caso restem comprovados os seguintes requisitos: boa-fé; erro de interpretação da Administração; verba de caráter alimentar; pagamento indevido sem ingerência dos servidores beneficiados:
AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. DIREITO ADMINISTRATIVO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES REFERENTES AOS QUINTOS E AO PERCENTUAL DE 10,87% (IPCr). IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO. VANTAGEM CONCEDIDA POR INICIATIVA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E EM DECORRÊNCIA DO CUMPRIMENTO DE DECISÕES JUDICIAIS. PERCEPÇÃO DE BOA-FÉ. NATUREZA ALIMENTAR DA VERBA. SEGURANÇA CONCEDIDA PARCIALMENTE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. As quantias percebidas pelos servidores em razão de decisão administrativa dispensam a restituição quando: (i) auferidas de boa-fé; (ii) há ocorrência de errônea interpretação da Lei pela Administração; (iii) ínsito o caráter alimentício das parcelas percebidas, e (iv) constatar-se o pagamento por iniciativa da Administração Pública, sem ingerência dos servidores. Precedentes.
(…)
(MS 31244 AgR-segundo, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 22/05/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-151 DIVULG 17-06-2020 PUBLIC 18-06-2020)
O STF também já entendeu que, ainda que o pagamento decorra de erro operacional, o ressarcimento é indevido em razão da presunção da boa-fé:
Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Direito Administrativo. 3. Servidor Público Estadual. Verba recebida a maior. Pagamento espontâneo do Ente Público decorrente de erro operacional. Servidor de boa fé. Impossibilidade de restituição. Precedentes. 4. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. Sem majoração da verba honorária, tendo em vista tratar-se de mandado de segurança na origem. (ARE 1203420 AgR, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 16/08/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-183 DIVULG 21-08-2019 PUBLIC 22-08-2019)
Portanto, para o STJ é importante distinguir entre a situação em que houve ERRO DE FATO e ERRO DE DIREITO para que se apure a boa-fé do servidor. Já no âmbito do STF não é realizada tal distinção, presumindo-se, em regra, a boa-fé.