As eleições municipais que tomarão lugar no exercício vindouro certamente (re)acenderão alguns debates doutrinários e jurisprudenciais vinculados à temática eleitoral.
Um dos assuntos que sempre está em pauta diz respeito à inelegibilidade do Prefeito em razão da rejeição de suas contas e de quem seria a competência para o respectivo julgamento. Em outras palavras, qual seria o “órgão competente” a que faz referência o art. 1º, I, “g”, da LC 64/90, modificada pela LC 135/2010? A inelegibilidade decorre da reprovação das contas pelo Tribunal de Contas ou pela Câmara dos Vereadores?
Inicialmente cumpre traçar uma distinção entre os conceitos de “contas de gestão” e “contas de governo”.
Nas contas de gestão há uma análise técnica dos atos praticados pelos ordenadores de despesas na administração do erário com fundamento em informações de natureza contábil, financeira, orçamentária, patrimonial e operacional. Dito de outro modo, têm por finalidade demonstrar a aplicação de recursos públicos pelos gestores, observando-se a legalidade, legitimidade e economicidade dos atos administrativos praticados, bem como analisando a regularidade e a conformidade dos procedimentos.
Por sua vez, nas contas de governo avalia-se a gestão política do Chefe do Poder Executivo, inserindo-se nessas contas a avaliação do desempenho da Administração Direta e Indireta. Em outras palavras, são as contas anuais que demonstram a atividade financeira do ente no respectivo exercício.
Feita essa distinção, surge a seguinte dúvida: o julgamento das contas de gestão, por se tratar de uma análise técnica, deve ser realizado pelo Tribunal de Contas? E o julgamento das contas de governo, por se tratar de uma análise de gestão política, deve ser realizado pela Casa Legislativa?
Quanto ao tema, eis o que preconiza da Constituição da República em seu art. 31:
Art. 31. A fiscalização do Município será exercida pelo Poder Legislativo Municipal, mediante controle externo, e pelos sistemas de controle interno do Poder Executivo Municipal, na forma da lei.
1º O controle externo da Câmara Municipal será exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver.
2º O parecer prévio, emitido pelo órgão competente sobre as contas que o Prefeito deve anualmente prestar, só deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da Câmara Municipal.
Portanto, a CF estabelece que o controle externo deve ser realizado pela Câmara dos Vereadores, AUXILIADA pelo Tribunal de Contas que, por sua vez, emitirá parecer prévio, o qual deverá ser adotado pela Casa Legislativa, salvo se houver decisão contrária de dois terços dos membros da Câmara.
Por sua vez, no RE nº 848.826, julgado sob a sistemática dos recursos repetitivos representativos da controvérsia (Tema 835), o STF definiu que o julgamento das contas dos prefeitos municipais é de responsabilidade dos vereadores, de forma INDISTINTA, ou seja, tanto as contas de governo (consolidadas) quanto as contas de gestão (ordenações de despesas):
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL. PARECER PRÉVIO DO TRIBUNAL DE CONTAS. EFICÁCIA SUJEITA AO CRIVO PARLAMENTAR. COMPETÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL PARA O JULGAMENTO DAS CONTAS DE GOVERNO E DE GESTÃO. LEI COMPLEMENTAR 64/1990, ALTERADA PELA LEI COMPLEMENTAR 135/2010. INELEGIBILIDADE. DECISÃO IRRECORRÍVEL. ATRIBUIÇÃO DO LEGISLATIVO LOCAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO. I – Compete à Câmara Municipal o julgamento das contas do chefe do Poder Executivo municipal, com o auxílio dos Tribunais de Contas, que emitirão parecer prévio, cuja eficácia impositiva subsiste e somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da casa legislativa (CF, art. 31, § 2º). II – O Constituinte de 1988 optou por atribuir, indistintamente, o julgamento de todas as contas de responsabilidade dos prefeitos municipais aos vereadores, em respeito à relação de equilíbrio que deve existir entre os Poderes da República (“checks and balances”). III – A Constituição Federal revela que o órgão competente para lavrar a decisão irrecorrível a que faz referência o art. 1°, I, g, da LC 64/1990, dada pela LC 135/ 2010, é a Câmara Municipal, e não o Tribunal de Contas. IV – Tese adotada pelo Plenário da Corte: “Para fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores”. V – Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE 848826, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Relator(a) p/ Acórdão: RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017)
O Tema 835 teve a seguinte Tese fixada: Para os fins do art. 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores.
E se a Câmara demorar para apreciar as contas do Chefe do Executivo, é possível a aprovação por julgamento ficto, prevalecendo o parecer do Tribunal de Contas?
NÃO.
Enquanto não houver o julgamento pela Casa Legislativa rejeitando as contas do Chefe do Executivo, este não poderá ser considerado inelegível. Dito de outro modo, ainda que haja mora na apreciação das contas do Prefeito, não é possível a consideração de um julgamento ficto, pois o parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, não possuindo caráter decisório.
Assim decidiu STF, em sede de Recurso Extraordinário Representativo da Controvérsia (Tema 157):
Repercussão Geral. Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Competência da Câmara Municipal para julgamento das contas anuais de prefeito. 2. Parecer técnico emitido pelo Tribunal de Contas. Natureza jurídica opinativa. 3. Cabe exclusivamente ao Poder Legislativo o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivo municipal. 4. Julgamento ficto das contas por decurso de prazo. Impossibilidade. 5. Aprovação das contas pela Câmara Municipal. Afastamento apenas da inelegibilidade do prefeito. Possibilidade de responsabilização na via civil, criminal ou administrativa. 6. Recurso extraordinário não provido. (RE 729744, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-186 DIVULG 22-08-2017 PUBLIC 23-08-2017)
Portanto, não se admite o julgamento ficto das contas do Chefe do Poder Executivo. O mero decurso do tempo não é capaz de promover a provação das contas do Executivo, prevalecendo, nesse caso, o parecer prévio emanado do órgão de contas.
No mencionado RE 729744 foi fixada a seguinte tese: o parecer técnico elaborado pelo Tribunal de Contas tem natureza meramente opinativa, competindo exclusivamente à Câmara de Vereadores o julgamento das contas anuais do Chefe do Poder Executivo local, sendo incabível o julgamento ficto das contas por decurso de prazo.
O tema foi cobrado no concurso do TJAP-Juiz 2022 (CEBRASPE).